sábado, novembro 11, 2006

RECORDAÇÕES

Mais um fim de semana! Micaela detestava os fins de semana. Sabia que iria para casa, se encafuava no sofá a ver televisão, ou a dormir. Como era sozinha, nunca tinha vontade de sair de casa.Houve um tempo que ainda saía de vez em quando com sua amiga Raquel, mas esta tinha arranjado um companheiro, e já não lhe sobrava tempo para saídas com a amiga. Pelo menos Raquel andava feliz, já era algo de positivo. Olhou o relógio, 18,30h. Tinha despachado o seu trabalho cedo. Pôs em ordem os papeis, arrumou-os na gaveta da secretária, tapou o computador, acendeu um cigarro, que raio de vicio tinha arranjado, enfim alguma distracção havia de ter...esta era a desculpa que ela dava, quando lhe chamavam a atenção por fumar, ás vezes em demasia. Recostou-se na cadeira saboreando o cigarro, e sorriu para consigo, pelo facto de ter sempre a sua secretária impecavelmente arrumada. Suas colegas diziam que era mania, mas não, era tão somente a força do hábito. Fechou os olhos, e recordou com alguma saudade o seu primeiro emprego. Luísa, sua chefe era exigente, e não gostava que as empregadas deixassem as secretárias desarrumadas de um dia para o outro. Dizia e com razão que havia documentos com alguma confidencialidade e não deveriam ser expostos á curiosidade dos empregados de limpeza. Assim Micaela ficara com este pequeno defeito profissional. Talvez por isso entre outras coisas, ela era a funcionária em quem o Director mais confiava. Voltou a olhar para o relógio, faltavam cinco minutos para as sete, preparava-se para sair, quando o Director a chamou pelo interfone.- D. Micaela?- Sim senhor Director.- Ainda bem que não saiu, poderia chegar aqui ao meu gabinete? O que seria este queria agora?Bateu á porta, e, entrou.- Desculpe D. Micaela, mas preciso que me faça o favor de enviar por correio electrónico, ainda hoje, este relatório para Deutz, é que só agora o Conselho de Administração deu autorização para comprar as peças dos motores das máquinas, e sabe como é importante que as mandem com a maior brevidade.Com certeza Sr. Director. Respondeu cortesmente.Já ia a sair quando ele pergunta:Espero que não vá transtornar os seus planos, como é fim de semana... - De modo algum. Não tenho nada importante para fazer este fim semana. Não atrapalha nada.- Nesse caso, fico muito grato. Até segunda e bom fim de semana.- Bom fim de semana também para si, responde ela já da porta. Como era seu costume leu atentamente o relatório, e só depois o passou no computador. Eram 21h quando deu por findo o trabalho.Pegou na mala e saiu.Na rua estava um calor infernal, como tinha ar condicionado nem se tinha apercebido do calor que estava. Ainda bem que o carro já estava á sombra.Pôs o carro a trabalhar, e enquanto o motor aquecia acendeu outro cigarro. Apetecia-lhe sair, ir ao cinema ou a outro lado qualquer, mas sozinha? Suspirou e arrancou um pouco irritada consigo mesma.O transito estava impossível, o que contribuiu para a enervar ainda mais. Por fim lá conseguiu chegar a casa, cansada e aborrecida.Foi ver se tinha mensagens no telefone, mas ninguém lhe tinha telefonado como era usual, nunca ninguém lhe telefonava...Tomou um duche frio, e preparava-se para comer qualquer coisa, quando, milagre dos milagres, o telefone tocou. Viu as horas, era já meia noite, quem seria a esta hora? Ficou um pouco assustada, seria alguma má notícia?Um pouco a medo atendeu: - Sim?- Boa noite, responde uma voz masculina que lhe era vagamente familiar, é de casa do sr. David Falcão?Ficou um pouco indecisa, quem seria este? Pelos vistos não sabia que estavam divorciados.Mas deixou-se levar pelo instinto, e respondeu:- É sim.- Seria possível falar com ele?- E quem quer falar com ele?- Sou um amigo e antigo camarada da tropa, o Simões.O Simões? Que estranho, então ele não sabia? Cada vez mais intrigada responde:-Ah Olá sr. Simões como está? E a sua esposa como vai?- Eu estou bem, ela não sei, nós separámo-nos, já há três anos.- Sim? Não sabia. O David não me contou nada.- É natural, eu desde que vocês estiveram em nossa casa nunca mais falei com ele, por isso suponho que ele ainda não sabe.Pelos vistos fora contagioso, pois havia também três anos que ela e David se tinham separado.Contudo alguma coisa lhe soava estranho. Porque haveria o Simões de telefonar aquela hora? Aqui havia coisa. Sorriu, a desconfiança tinha sido nela inoculada por David. - Pois ele não está. Neste momento está a trabalhar.Qualquer coisa lhe dizia que não devia falar da sua separação, assim, seguiu o seu instinto que raramente a enganava. - Então a D, Micaela pode dizer-me onde ele está a trabalhar?Gostava de falar com ele. E agora Micaela? Como vais descalçar esta bota? Mentindo claro.- Pois não sei! É que ele foi para um novo cliente, e ainda não me disse onde estava.Pareceu-lhe que ele estava a rir-se. Também Micaela és uma desconfiada, pensou, apercebeu-se porém que para ela era difícil dizer que era divorciada, era como se tivesse sido marcada com um ferro em brasa...- Ah! Se ele lhe telefonar diz-lhe para ele me ligar por favor? Eu hoje estou de serviço nos bombeiros.- Com certeza, dir-lhe-ei sim. - Então boa noite, e desculpe tê-la incomodado a esta hora.- Não tem importância, boa noite! Tinha perdido o apetite. Ela que tudo fazia para tentar esquecer David, havia sempre alguma coisa a recordar-lho. E como não havia de haver, se ela tinha fotos dele espalhadas por toda a casa, exactamente no mesmo sítio onde as colocara ainda casada. Olhou para uma que estava sobre a televisão. Ele parecia sorrir-lhe, dava a sensação que queria dizer-lhe algo.Mas David nunca mais dera sinal dele. Isso entristecia-a demasiado. Tinham decidido continuar amigos, mas sem ela saber porquê ele deu o dito por não dito, e nunca mais soube dele.... Contra sua vontade, lágrimas rebeldes rolaram-lhe na face.Não fora de sua vontade a separação. Sabia que ele também não queria isso, então o que foi que aconteceu? Que foi que os separou? O orgulho, só o orgulho idiota de cada um deles.Agora ela levava uma vida vazia sem interesse por nada.Tinha alguns amigos que ás vezes a convidavam para sair, mas sabia de antemão que a intenção não era só levá-la a passear, almoçar, ou ir ao cinema.....Só que ela fazia-se desentendida, eles acabaram por desistir. Agora sozinha muitas vezes se arrependia, mas não podia fazer nada. David era e seria sempre o seu marido.... Embrenhada nestes pensamentos, nem deu pelo tempo passar, e quando viu as horas era quase dia, cinco da madrugada....resolveu tomar um comprimido para dormir, dormir, esquecer, era tudo o que lhe restava.Estava quase a adormecer, quando o telefone toca de novo.Meu Deus, pensou, quem será agora? Só temia que algo acontecesse a algum dos seus filhos, estavam tão longe dela.... E tão esquecidos que tinham mãe....- Estou?- Boa noite! Ou será bom dia? Ainda acordada?Micaela deu um pulo. Aquela voz...estava a sonhar ou era David? Não, não podia ser....- Estou sim, quem fala?- Ainda não passou tanto tempo que não reconheças a minha voz, ou já?- Na verdade não estou reconhecendo não, respondeu insegura.- Estás sozinha?- Isso interessa?- Sim. É até importante, para mim, saber.- E porquê?- Diz-me só se estás sozinha ou acompanhada.- Se é tão importante, estou acompanhada, mentiu. Lá estava o orgulho a falar mais alto. Mas que queres? Precisas de alguma coisa?- Afinal sempre conheces a minha voz. Preciso sim. Preciso de ver-te.- Lamento, mas não vai ser possível.- Está bem, sendo assim até outro dia em que estejas sozinha.- Adeus, até esse dia. Desligou o telefone e chorou, de raiva, se queria tanto vê-lo, porque respondera assim? Maldito orgulho, que falava sempre mais alto!Não foi para a cama, deitou-se no sofá e ali ficou a chorar de raiva e saudade.Pouco tempo depois era a campainha da porta que tocava. Raio! Quem seria agora, será que não podia dormir nem um segundo esta noite?- Quem é? Ninguém respondeu. Devia ser algum vizinho que se esquecera da chave, só podia.- Quando ia voltar para o sofá, ouviu um pancada leve na porta. Espreitou pelo ralo, e... era ele! Era David! Não podia ser. Não podia acreditar. Abriu a porta e lá estava ele sorrindo com ar burlão. - Posso entrar?- Claro. A casa é tua.- Posso beijar-te?- Também. És o meu marido. Podes e deves.- Ele beijou-a suavemente como era seu costume. - Micaela estava radiante. Não cabia em si de tanta felicidade.- David fora visitá-la, ao fim de tanto tempo....- Sentaram-se e conversaram imenso tempo, até que ele perguntou, posso cá dormir hoje? - Podes a cama está vazia, eu durmo no sofá.- E não queres dormir comigo?- E tu queres?- Foi para isso que vim, apesar das tuas mentirinhas...E foram...Que bem lhe sabia sentir o corpo dele encostado ao seu.- Ouviu ao longe uma melodia de Mozart...ela adorava Mozart- A melodia repetia-se uma e outra vez...até que acordou e se viu deitada no sofá, e era o telemóvel a tocar, o seu amigo Ricardo, convidava-a para ir tomar café com ele. Reparou então que era domingo, pois só ao domingo ele a convidava...O que ela julgava ser o corpo de David, eram as costas do sofá.Mais uma vez a visita de David não passara de um sonho...Porque acordou? Estava tão feliz a sonhar...E o telefonema teria sido sonho também?Efeito dos comprimidos para dormir que ela tomara....Sentiu-se mais triste e infeliz que nunca.....Mesmo assim, vestiu-se para ir tomar café com o amigo. Talvez David aparecesse por lá....Quem sabe? A esperança é a última a morrer....Quando chegou, já Ricardo a esperava. Acolheu-a com o seu costumado sorriso amigo...Entretanto, o sr. Maurício que era o dono do café, pessoa sempre bem disposta, e, que parecia gostar de Micaela, chamou-a e, disse-lhe baixinho: - Sabe quem esteve aqui ontem?O seu coração pulou-lhe no peito, mas disfarçando respondeu:- Não. Quem foi? - O sr. David. - Sim? - Sim. Vinha com pressa, mas veio cumprimentar-me. Sabe? Achei-o triste, abatido parecia mais velho...Meu Deus, pensou, todos o vêem menos eu...Afivelou um sorriso despreocupado, e lá foi tomar café, e conversar com o seu inseparável amigo Ricardo...De volta a casa, tomou uma dose maciça de sonoríferos, e dormiu até ás 7,39h de segunda feira de um só sono.Tomou o seu habitual duche, e lá foi para mais uma semana de trabalho. Arroja 2002-07-26 Maria Isabel Galveias

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