quarta-feira, dezembro 20, 2006

A MINHA AVOZINHA

6 de Dezembro! Hoje faria anos, se fosse ainda viva, a minha avózinha. A minha avózinha foi na minha vida, figura proeminente, já que com ela fui criada e por ela fui muito amada. Recordo com muita saudade os meus momentos passados a seu lado, na Quinta dos Serrões, nos Olivais. Quantas boas recordações...! Lembro-me, que de manhã, antes de sair para ir ás compras, minha avó ia ao meu quarto, de mansinho, colocar sobre a minha mesa de cabeceira, uma tigela com uma papa de farinha Amparo, ou então uma gemada com café. Depois saía, para o seu passeio matinal, que consistia em ir até á praça de Moscavide fazer as suas compras. Quando chegava, lá pelas 11h da manhã, eu que fazia serão até ás tantas, com os trapos e as bonecas, ou com algum livro, ainda dormia. Minha avózinha vinha com pézinhos de lã ao pé de mim, dava-me um leve beijo e colocava sobre a minha almofada algum miminho que trazia da praça, ou fruta que colhia na Quinta. Jamais, minha santa avó, me ralhava por eu ser noctívaga e gostar de dormir a manhã na cama, ela era como eu, também gostava de seroar. Todas as noites, ficávamos as duas até tarde, ela costurando, eu fingindo que costurava ou tricotava, ouvindo os Companheiros da Alegria, era um programa radiofónico bastante divertido e que minha avó não dispensava. Outras vezes líamos as duas. Ou então, ela contava-me histórias. Sabia histórias lindas, das quais tenho um vaga lembrança, mas nunca as soube contar...... É curioso, eu, que tudo aprendia com facilidade, nunca decorei as histórias lindas que ela me contou......Contudo, lembro-me, de pequenas histórias, que ela me contava em forma de repreensão, quando eu fazia alguma traquinice. Eu gostava muito de me por frente ao espelho, fazendo e desfazendo as minhas tranças, inventando os mais variados penteados. Um dia ela chamou-me e disse-me assim: - Já te contei a história da menina vaidosa? - Não avózinha como é? - Era uma menina, que como tu, passava muito tempo a mirar-se no espelho ( minha avózinha falava assim, numa linguagem do fim do Século 19) um dia esteve mais tempo do que o habitual. Sua mãe estranhou, porque ela era traquina como tu, e estava sossegada há tanto tempo... foi espreitá-la, e lá estava a menina pondo fita, tirando saia, vestindo blusa, calçando sapato, tão entretida estava, que a mãe não disse nada, e foi costurar. - De repente, ouve um grito aflito da menina. A mãe ficou assustada. Correu para ela, e lá estava ela a olhar para o espelho, gritando a bom gritar, apontando com ar aterrorizado, dizia mamã, mamã, socorro, está ali um monstro, que me quer comer. A mãe olhou e começou a rir, pois o monstro era a menina, que tanto quis ficar bonita, que ficou horrivelmente feia. Entendeste a história? - Sim avózinha, entendi. A partir daí eu tornei-me uma menina, que gostava de andar limpa simples, mas feliz, sem medo do monstro do espelho. - Pelo facto de ser a primeira neta, e sobrinha, e que além do mais tinha o problema de olhos, pois nasci cega, e fui cega até aos dois anos, eu era uma menina mimada, que gostava de fazer birras, e algumas vezes levantava a mão, como quem quer bater em alguém. - Um dia em que eu estava com uma birra feia, porque a minha mãe não me levou com ela, e batia e pontapeava a quem se aproximasse, com muita paciência, a avó, sentou-me colo dela acalmou-me e começou: - Sabes? Era uma vez uma menina, que como tu era embirrante, teimosa e malcriada, e, quando a contrariavam, batia a toda a gente. Lembro-me de me insurgir dizendo: - Pois, como eu não é? - Não sei, responde ela, isso depende de ti. Esta menina foi muito castigada. - Foi castigada como? perguntei eu com a curiosidade própria duma criança de cinco anos, pois eu não teria mais do que isso, bem continua ela, essa menina ficou muito doente, com uma doença muito rara e muito esquisita, - Que doença era? - Ninguém sabia. Só sei que a menina, bateu na mãe, e de repente, cai para o chão, inanimada, com a mão no ar, no gesto de quem vai bater... - Assim avózinha? Interrompi eu fazendo menção de lhe dar uma bofetada... - Exactamente. Deus castigou-a e ela ficou anos adormecida, com a mão amiaçadoramente erguida... - E depois? Morreu? Eu tinha nessa altura um pavor louco da morte. - Não. Um dia a avó dela segredou-lhe ao ouvido: ouves-me? Se me ouvires, mexe a outra mão. A menina assim fez, então a avó murmurou-lhe, queres ficar boa e ir brincar com outros meninos no jardim? A menina mexeu de novo a mão, a avó continuou, garanto que ficarás boa, se pedires perdão ás pessoas a quem bateste, e magoaste. Fazes isso? A menina mexeu de novo a mão. Então vai, ordenou a avó. Ela levantando-se foi ter com a mãe, e a chorar pediu perdão, prometendo que daí para a frente nunca mais seria embirrante, nem malcriada nem teimosa. Resultou desta história, que eu ainda hoje sou sem me vangloriar, humilde e submissa. (Demasiado, ai de mim!) Eu como qualquer criança era muito curiosa, bisbilhoteira. Nada havia que mais gozo me desse, do que remexer no baú da bisavó, ver aqueles retratos muito antigos, aquelas rendas, os sapatos muito bicudos, que me faziam rir. Lembro-me que ela tinha um saco grande, cheio de retalhos, a bisavó fora modista de alta costura, eu ficava encantada, com os retalhos de cetim, renda, organdi veludo, enfim, enquanto não cortei tudo para fazer bonecas de trapo e os respectivos vestidos não fiquei feliz. Mas um dia, fui mexer no baú da avó. Ela tinha lá guardado umas drageias, que eram do avô. Curiosa como eu era, experimentei pôr uma na boca, como era doce, chupei até ficar amarga, enfim chupei-as todas, imaginem o susto da avó, quando viu. Ralhou, pôs-me de castigo durante uma semana, não fui brincar com a Rosinha, minha grande amiga de infância, e que já não vejo há longos longo anos. Mas ao que parece, não foi o suficiente. Lembro-me que uma vez, fui para a vacaria, onde encontrei um frasco, que me despertou a curiosidade, destapá-lo e cheirà-lo foi um instante. Mas pobre de mim, o frasco continha amoníaco, imaginem, fiquei sem folgo, de desatei a correr pela quinta fora, deveras aflita. A avózinha assustou-se como é de prever, mas não o manifestou, apenas me disse: - Minha querida, penso que só te falta acontecer o mesmo que aconteceu á menina curiosa. - E que foi que lhe aconteceu? - Foi grave, mas não tento como o amoníaco. - Então o que foi que lhe aconteceu? Avózinha, conta-me lá.... - Bem, a mãe da menina tinha chegado da praça, mas o pai chamou-a, e ela não teve tempo de arrumar as compras. Deixou o cesto no chão da cozinha e foi ver o que o marido queria com tanta urgência. A menina curiosa, foi logo bisbilhotar, para ver se a mãe lhe tinha trazido alguma gulodice. Meteu a mão no cesto, e deu um grito, chorando muito. A mãe acorreu a ver o que se passava, deu com a menina muito aflita, porque não sabia que havia caranguejos dentro do cesto, e estes ficaram agarrados á mão dela..... - “Tadinha” da menina, disse eu muito comovida... - Pois é. Isto é para veres onde leva a curiosidade. Mas toma atenção, nem sempre a curiosidade é má. - Não? Então não percebo!? - A curiosidade em aprender, em saber sempre mais qualquer coisa, essa é boa. Por exemplo, tu gostas de ler não é? Isso é curiosidade positiva. Pois ao leres, ficas a saber muitas coisas boas. Ficas a saber resolver problemas, que se não lesses, nem sabias que podiam existir. Conheces usos e costumes, de terras e países, onde nunca foste, e talvez nunca irás, mas sem lá ires conheces tudo como se lá vivesses. Percebes agora? Eu percebi. E garanto que, nunca mais tive curiosidade se saber o que se passava, dentro dos cestos, das gavetas, em casa dos vizinhos. Mas confesso, sou muito curiosa, em relação ao que se passa no mundo á minha volta, mas pela positiva. Assim a minha avózinha educou a minha personalidade. O que lhe agradeço muito. Embora considere que sou demasiado mansa. Também incutiu em mim o gosto pela leitura. Ela tinha poucos livros, mas os que tinha eram bem bonitos. Havia um com muitas histórias, que eu não me fartava de ler...Desapareceu, com muita pena minha. Tinha um de que eu gostava muito também, Lisboa em Camisa, era divertidíssimo. Ás vezes o avô chegava da rua e, vendo-nos a ler dizia de modo trocista: Lá estão as professoras, muito lêem, com tanta leitura, vão ficar muito sábias. Pobre de mim, quanto mais aprendo menos sei. Minha avózinha, nunca se zangava com o avô. Suportava todos os remoques e atitudes dele, com uma calma e serenidade, impressionantes. Não tenho recordações, de ver os meus avós brigarem fosse por que motivo fosse. Lembro-me dum caso que aconteceu, e não posso deixar de o contar. O avô gostava muito de touradas e de teatro de Revista á Portuguesa. Não falhava uma estreia, mas ia sempre sozinho. Ás vezes levava-me com ele, mas chauvinista como todos os homens da sua época, jamais levava a avó com ele, fosse onde fosse. Não se importava que ela fosse ao cinema, sozinha ou acompanhada por mim ou pelos meus tios, mas com ele não. De vez em quando a avó perguntava: - Ó Zé, quando me levas ao teatro? – invariavelmente o avô respondia - Domingo. Vamos Domingo. Certa vez a avó perguntou de novo, e de novo ele respondeu – Domingo. Ela perguntou: - Hoje? – o avô estava a ler o jornal, e, distraídamente respondeu: - Sim..... A avózinha, depois do almoço, impapoilou-se toda, para ir á matiné, comigo e o avô. Ao vê-la assim toda aprimorada ele comenta: - Hena, hena, mas que bonita estás. Onde é o passeio? - Então vamos ao teatro não é? - Ao teatro? Hoje? - Sim. Tu disseste que íamos hoje?! Zombeteiro o avô respondeu: - Hoje não. Domingo. Impávida e serena, a avó pegou em mim e fomos ao cinema a Moscavide. Nunca me esquecerei, era um filme português que se chamava O Fogo, e, que era passado no quartel de bombeiros do Bairro da Encarnação. Era um drama, e, eu chorei desatinadamente por causa de um bombeiro, que ao resgatar um irmão do fogo, acabou por morrer queimado, uma verdadeira tragédia.... Havia, perto da casa dos meus avós, uma família, onde haviam 4 filhos, três rapazes e uma menina, todos mais velhos do que eu. Eu gostava muito de ir brincar com a Rosinha, e, pedia á minha avó: - Avózinha, deixe-me ir brincar com a Rosinha?... ela respondia. Nem Rosa nem Cravo. Vai agora para uma casa onde só há homens....!! - Avózinha, deixe-me ir! Insistia eu. - Só se me cantares a duquesa, eu cantava, ela dizia: Agora canta a Anabela, eu cantava, ela tornava, agora a Mafalda, só depois de eu cantar tudo o que ela queria é que ela me deixava ir. Dáva-me muita liberdade. Embora me vigiasse. De vez em quando, lá vinha ela. - Ó senhora Maria – era a mãe da Rosinha- viu por aqui a minha pequena? Dois dedos de conversa, pouca coisa, porque a avó, não era dada a ir para casa das vizinhas conversar. Tinha sempre a roupa no cloreto, como ela dizia, e lá voltava para casa. Pelos Santos Populares, havia sempre bailarico, no Largo da Viscondessa. Ainda existe o Coreto, é das poucas coisas que ficaram nos Olivais do meu tempo de menina; Começavam as sessões dançantes na véspera de Santo António, e, diariamente, só a acabavam no dia de S. Pedro. Todas as noites lá ia a avózinha comigo. Eu gostava muito de dançar, e, ela gostava muito de me ver....bons tempos aqueles...! Assim foi a minha querida avózinha. Agora que ela partiu, não quero deixar de lhe dizer: - Querida avózinha, por todos os bons momentos passados ao seu lado, por todas as boas recordações que guardo de si, muito obrigada. Todas as palavras são poucas para lhe agradecer os melhores momentos da minha infância. Embora houvesse quem a considerasse má, por ser justa. Eu sei que a minha avózinha hoje, está no céu, junto do Pai. Ela merece. Só me resta dizer: - Adeus avózinha, um dia destes, voltaremos a encontra-nos se Deus quiser. Até lá fica toda a saudade desta neta que muito a amou, e nunca a esquecerá.
Maria Isabel. Arroja, 6 de Dezembro de 1999. -

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