LENDAS DE PORTUGAL

O ALCAIDE DE CASTELO DE FARIA
De Alexandre Herculano
A breve distância da vila de Barcelos, nas faldas do Franqueira, alveja ao longe
um convento de Franciscanos. Aprazível é o sítio, sombreado de velhas
árvores. Sentem-se ali o murmurar das águas e a bafagem suave do vento,
harmonia da natureza, que quebra o silêncio daquela solidão, a qual, para nos
servirmos de uma expressão de Fr. Bernardo de Brito, com a saudade dos
seus horizontes parece encaminhar e chamar o espírito à contemplação das
coisas celestes.
O monte que se alevanta ao pé do humilde convento é formoso, mas áspero e
severo, como quase todos os montes do Minho. Da sua coroa descobre-se ao
longe o mar, semelhante a mancha azul entornada na face da terra. O
espectador colocado no cimo daquela eminência volta-se para um e outro
lado, e as povoações e os rios, os prados e as fragas, os soutos e os pinhais
apresentam-lhe o panorama variadíssimo que se descobre de qualquer ponto
elevado da província de Entre-Douro-e-Minho.
Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado de sangue: já
sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos, estridor de
habitações incendiadas, sibilar de setas e estrondo de máquinas de guerra.
Claros sinais de que ali viveram homens: porque é com estas balizas que eles
costumam deixar assinalados os sítios que escolheram para habitar na terra.
O castelo de Faria, com as suas torres e ameias, com a sua barbacã e fosso,
com os seus postigos e alçapões ferrados, campeou aí como dominador dos
vales vizinhos. Castelo real da Idade Média, a sua origem some-se nas trevas
dos tempos que já lá vão há muito: mas a febre lenta que costuma devorar os
gigantes de mármore e de granito, o tempo, coou-lhe pelos membros, e o
antigo alcácer das eras dos reis de Leão desmoronou-se e caiu. Ainda no
século dezassete parte da sua ossada estava dispersa por aquelas encostas: no
século seguinte já nenhuns vestígios dele restavam, segundo o testemunho de
um historiador nosso. Um eremitério, fundado pelo célebre Egas Moniz, era o
único eco do passado que aí restava. Na ermida servia de altar uma pedra
trazida de Ceuta pelo primeiro Duque de Bragança, D. Afonso. Era esta lájea
a mesa em que costumava comer Salat-ibn-Salat, último senhor de Ceuta. D.
Afonso, que seguira seu pai D. João I na conquista daquela cidade, trouxe esta
pedra entre os despojos que lhe pertenceram, levando-a consigo para a vila de
Barcelos, cujo conde era. De mesa de banquetes mouriscos converteu-se essa
pedra em ara do cristianismo. Se ainda existe, quem sabe qual será o seu
futuro destino?
Serviram os fragmentos do castelo de Faria para se construir o convento
edificado ao sopé do monte. Assim se converteram em dormitórios as salas de
armas, as ameias das torres em bordas de sepulturas, os umbrais das
balhesteiras e postigos em janelas claustrais.
O ruído dos combates calou no alto do monte, e nas faldas 
dele alevantaram-se a harmonia dos salmos e o sussurro das orações.
Este antigo castelo tinha recordações de glória. Os nossos maiores, porém,
curavam mais de praticar façanhas do que de conservar os monumentos delas.
Deixaram, por isso, sem remorsos, sumir nas paredes de um claustro pedras
que foram testemunhas de um dos mais heroicos feitos de corações
portugueses.
Reinava entre nós D. Fernando. Este príncipe, que tanto degenerava dos seus
antepassados em valor e prudência, fora obrigado a fazer paz com os
castelhanos, depois de uma guerra infeliz, intentada sem justificados motivos,
e em que se esgotaram inteiramente os tesouros do Estado. A condição
principal, com que se pôs termo a esta luta desastrosa, foi que D. Fernando
casasse com a filha d’el-rei de Castela: mas, brevemente, a guerra se acendeu
de novo; porque D. Fernando, namorado de D. Leonor Teles, sem lhe
importar o contrato de que dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu
por mulher, com afronta da princesa castelhana. Resolveu-se o pai a tomar
vingança da injúria, ao que o aconselhavam ainda outros motivos. Entrou em
Portugal com um exército e, recusando D. Fernando aceitar-lhe batalha, veio
sobre Lisboa e cercou-a. Não sendo o nosso propósito narrar os sucessos
deste sítio, volveremos o fio do discurso para o que sucedeu no Minho.
O Adiantado de Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela província de
Entre-Douro-e-Minho com um grosso corpo de gente de pé e de cavalo,
enquanto a maior parte do pequeno exército português trabalhava inutilmente
ou por defender ou por descercar Lisboa. Prendendo, matando e saqueando,
veio o Adiantado até as imediações de Barcelos, sem achar quem lhe atalhasse
o passo; aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D. Henrique Manuel, conde de
Ceia e tio d’el-rei D. Fernando, com a gente que pôde juntar. Foi terrível o
conflito; mas, por fim, foram desbaratados os portugueses, caindo alguns nas
mãos dos adversários.
Entre os prisioneiros contava-se o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno
Gonçalves. Saíra este com alguns soldados para socorrer o conde de Ceia,
vindo, assim, a ser companheiro na comum desgraça. Cativo, o valoroso
alcaide pensava em como salvaria o castelo d’el-rei seu senhor das mãos dos
inimigos. Governava-o na sua ausência, um seu filho, e era de crer que, vendo
o pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais
quando os meios de defensão escasseavam. Estas considerações sugeriram um
ardil a Nuno Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse conduzir ao pé
dos muros do castelo, porque ele, com as suas exortações, faria com que o
filho o entregasse, sem derramamento de sangue.
Um troço de besteiros e de homens d'armas subiu a encosta do monte da
Franqueira, levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O
Adiantado de Galiza seguia atrás com o grosso da hoste, 
e a costaneira ou ala direita, capitaneada por João Rodrigues de Viedma,
 estendia-se, rodeando osmuros pelo outro lado. 
O exército vitorioso ia tomar posse do castelo de
Faria, que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.
De roda da barbacã alvejavam as casinhas da pequena povoação de Faria: mas
silenciosas e ermas. Os seus habitantes, apenas enxergaram ao longe as
bandeiras castelhanas, que esvoaçavam soltas ao vento, e viram o refulgir
cintilante das armas inimigas, abandonando os seus lares, foram acolher-se no
terreiro que se estendia entre os muros negros do castelo e a cerca exterior ou
barbacã.
Nas torres, os atalaias vigiavam atentamente a campanha, e os almocadens
corriam com a rolda(*) pelas quadrelas do muro e subiam aos cubelos
colocados nos ângulos das muralhas.

[(*) Roldas e sobrerroldas eram os soldados e oficiais 
encarregados de rondarem os postos e atalaias]
O terreiro onde se tinham acolhido os habitantes da povoação estava coberto
de choupanas colmadas, nas quais se abrigava a turba dos velhos, das
mulheres e das crianças, que ali se julgavam seguros da violência de inimigos desapiedados.
Quando o troço dos homens d'armas que levavam preso Nuno Gonçalves
vinha já a pouca distância da barbacã, os besteiros que coroavam as ameias
encurvaram as bestas, e os homens dos engenhos prepararam-se para arrojar
sobre os contrários as suas quadrelas e virotões, enquanto o clamor e o choro
se alevantavam no terreiro, onde o povo inerme estava apinhado.
Um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a
barbacã, todas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas
converteu-se num silêncio profundo.
— "Moço alcaide, moço alcaide! — bradou o arauto — teu pai, cativo do
muito nobre Pedro Rodriguez Sarmento, Adiantado de Galiza pelo muito
excelente e temido D. Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu
castelo."
Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro e,
chegando à barbacã, disse ao arauto — "A Virgem proteja meu pai: dizei-lhe
que eu o espero."
O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e
depois de breve demora, o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao pé
dela, o velho guerreiro saiu dentre os seus guardadores, e falou com o filho:
"Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo, que, segundo o regimento
de guerra, entreguei à tua guarda quando vim em socorro e ajuda do esforçado
conde de Ceia?"
 "É — respondeu Gonçalo Nunes — do nosso rei e senhor D.
Fernando de Portugal, a quem por ele fizeste preito e menagem." — "Sabes
tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca entregar, por
nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das
ruínas dele?"
— "Sei, oh meu pai! — prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não
ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar. — Mas não vês que
a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a
resistência?"
Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou
então: — "Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria!
Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora
em que os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem no teu
cadáver."
— "Morra! — gritou o almocadem castelhano — morra o que nos
atraiçoou." — E Nuno Gonçalves caiu no chão atravessado de muitas espadas
e lanças.
— "Defende-te, alcaide!" — foram as últimas palavras que ele murmurou.
Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacã, clamando vingança.
Uma nuvem de frechas partiu do alto dos muros; 
grande porção dos assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio sangue 
com o sangue do homem leal ao seu juramento.
Os castelhanos acometeram o castelo; no primeiro dia de combate o terreiro
da barbacã ficou alastrado de cadáveres tisnados e de colmos e ramos
reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez Sarmento tinha sacudido
com a ponta da sua longa chuça um colmeiro incendiado para dentro da cerca;
o vento suão soprava nesse dia com violência, e em breve os habitantes da
povoação, que tinham buscado o amparo do castelo, pereceram juntamente
com as suas frágeis moradas.
Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição do seu pai: lembrava-se de que
o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos os momentos
o último grito do bom Nuno Gonçalves — "Defende-te, alcaide!"
O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos muros do
castelo de Faria. O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército
castelhano foi constrangido a levantar o cerco.
Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente 
louvado pelo seu brioso procedimento e pelas façanhas que obrara na defesa 
da fortaleza cuja guarda lhe fora encomendada pelo seu pai no último trance da vida. Mas a
lembrança do horrível sucesso estava sempre presente no espírito do moço
alcaide. Pedindo a el-rei o desonrasse do cargo que tão bem desempenhara,
foi depor ao pé dos altares a cervilheira e o saio de cavaleiro, 
para se cobrir com as vestes pacíficas do sacerdócio. Ministro do santuário, era com lágrimas
e preces que ele podia pagar ao seu pai o ter coberto de perpétua glória o
nome dos alcaides de Faria.


Mas esta glória, não há hoje ai uma única pedra que a ateste. 
As relações dos historiadores foram mais duradouras que o mármore.



LENDA DO MILAGRE DAS ROSAS

Chegara o mês de Janeiro. Em Coimbra, as casas das monjas de Santa Clara, quase destruídas pelas cheias do Mondego, reconstruíram-se rapidamente. Isso fora possível porque a rainha Dona Isabel velava por elas. 
Quando algum desgraçado se via sem pão dentro dum lar minado pela doença, logo procurava a sua rainha. E se nem sempre regressava com saúde para o corpo, pelo menos trazia pão para a boca, e palavras tão lindas ressoando aos seus ouvidos, que por si só já constituíam consolação para o seu espírito. 
De todos, essa esposa e filha de reis cuidava como se fossem pessoas suas. Levava o seu zelo ao ponto de ir ela própria vigiar os trabalhos em curso nas casas das monjas. E os operários, desvanecidos com a real presença, e ainda com os auxílios monetários que Dona Isabel trazia aos mais necessitados, trabalhavam com redobrado ardor. 
Porém, como acontece neste mundo, a rainha não tinha somente amigos. E certa vez um despeitado da corte procurou azedar o ânimo de el-rei D. Dinis. Aproveitando um dos momentos em que estava a sós com o rei, encetou o diálogo que há muito andava bailando no seu cérebro: 
— Perdoai-me, Senhor, se me atrevo a falar-vos num assunto que me traz preocupado. 
O rei olhou-o com certa altivez. 
— Deixai-vos de rodeios. Dizei o que pretendeis. 
O cortesão mordeu os lábios e disse: 
— Senhor meu Rei... A Rainha, vossa digna esposa, dispõe com bastante liberdade do vosso tesoiro. 
D. Dinis franziu as sobrancelhas: 
— Que dizeis? Explicai-vos e já! 
O fidalgo tornou com humildade fingida: 
— Meu Senhor, acreditai no que vos digo... A Rainha gasta de mais... 
— Mas como sabeis isso? 
— Oh? E fácil de saber, meu Senhor... Só os vossos bons olhos não querem ver a verdade. Se me permitis... 
O rei encolerizou-se. 
— Falai! Mas falai duma vez! 
O fidalgo baixou a cabeça e declarou numa voz um tanto incerta: 
— Oh, meu Rei e Senhor! Só vos quero ajudar… O dinheiro desaparece, esgota-se, some-se... São as esmolas, as obras das igrejas, os empréstimos, as dádivas, as doações a conventos… enfim... uma loucura, Senhor! É necessária a vossa intervenção... 
Um grito do rei de Portugal cortou-lhe a frase: 
— Basta! Eu sei bem o que hei-de fazer! 
D. Dinis levantou-se, fazendo recuar o fidalgo. Em largas passadas pelo aposento, procurava acalmar a impetuosidade do seu temperamento belicoso. Seria verdade o que acabavam de dizer-lhe? Sim, devia ser verdade. A mentira representaria nesse momento um desmedido arrojo. E ao homem que ele tinha na sua frente sobrava-lhe em mesquinhez o que lhe faltava em audácia. E todavia… o vir à sua presença pôr em cheque a própria rainha não seria já um acto destemido? 
O rei parou de andar dum extremo ao outro da saleta. Olhou fixamente o fidalgo, que baixou os olhos, e ordenou: 
— Deixai-me só! Preciso de pensar no caso sem a sensação de estar a ser espiado. 
Inclinando a cabeça, o fidalgo retirou-se em silêncio. Conhecia bem o rei e sabia de antemão que as suas declarações o tinham impressionado. Quanto ao monarca, logo que ficou longe das vistas do seu súbdito, deixou-se cair numa cadeira, murmurando consigo mesmo: «É isso! Tenho de pôr cobro de uma vez para sempre aos hábitos excessivamente misericordiosos da Rainha! E será o mais breve possível!» 
Ora, se bem o pensou melhor o fez. Dias depois, quando Dona Isabel saía dos paços de Coimbra acompanhada pelas damas e pelos cavaleiros do seu séquito para se dirigir às obras de Santa Clara e espalhar as suas esmolas, surgiu-lhe de súbito, pela frente, a figura desempenada do rei. Ele cumprimentou-a, cortesmente: 
— Bom dia, Senhora! Ia partir para uma caçada, mas lembrei-me de vos saudar.
— Agradeço-vos a boa ideia, Senhor. 
A rainha disse estas palavras sorrindo, mas instintivamente recuou um pouco, como a disfarçar o que levava no regaço. Porém, esse gesto embora mal esboçado não escapou à perspicácia de D. Dinis. Tentando esconder a suspeita que o assaltara, ele perguntou de novo, com a cortesia própria dum rei: 
— Podeis dizer-me, Senhora, onde ides tão cedo? 
Dona Isabel empalideceu. O coração bateu-lhe mais apressado e, após certa hesitação, respondeu com voz branda: 
— Vou... armar os altares do mosteiro de Santa Clara. 
Então el-rei olhou-a de sobrecenho carregado. A sua voz tornou-se menos agradável. O sorriso cortês desapareceu-lhe dos lábios, enquanto perguntava: 
— E que levais no vosso regaço, Senhora? À-la-fé que pareceis receosa. Nem quero acreditar que pretendeis ir distribuir novas esmolas pelos vossos protegidos... Isso seria contra todas as minhas ordens e contra todos os meus conselhos. Dizei-me, pois, o que levais no regaço. 
A rainha tornou-se ainda mais pálida e por momentos permaneceu silenciosa. Elevava a Deus o pensamento, pedindo-Lhe aflitivamente o Seu divino auxílio. Alarmada, toda a comitiva olhava o rei, receosa da sua cólera. D. Dinis fixou de frente a rainha, que dava a ideia de estar presente apenas em corpo. Sentiu fugir-lhe toda a calma de que se tinha revestido e gritou-lhe: 
— Então, Senhora, terei de dar ouvidos aos rumores que circulam à minha volta? Sempre é verdade que levais no vosso regaço dinheiro para oferecer aos maltrapilhos que protegeis? 
Dona Isabel olhou o rei como quem torna dum sonho. O rubor voltava-lhe às faces, o sorriso brincava-lhe de novo nos lábios. E na sua voz melodiosa e pausada, respondeu: 
— Enganai-vos, Real Senhor.. O que levo no meu regaço... são rosas para enfeitar os altares do mosteiro! 
D. Dinis sorriu com ironia. 
— Rosas? Como vos atreveis a mentir, Senhora? Rosas em Janeiro?... Pois ficai sabendo: se aqui estou neste momento… se aqui vim, é porque alguém me garantiu que leváveis dinheiro... Compreendeis agora? 
O rosto da rainha não se contraiu sequer, humildemente. E, ante o pasmo e a aflição de quantos a rodeavam, insistiu com firmeza: 
— Enganai-vos, Senhor! E enganou-se também quem vos informou. São rosas o que levo no regaço! 
D. Dinis cerrou os dentes. Os seus olhos brilhavam de cólera e a sua voz tornou-se ainda mais dura: 
— Insistis na vossa mentira, Senhora? Então... mostrai-me essas rosas! 
Serenamente, ante o olhar atónito do rei e de todos os que ali se encontravam, a rainha Dona Isabel abriu o regaço e deixou ver um ramo de rosas maravilhosas, enquanto murmurava: 
— Vede, Senhor.. Vede com os vossos olhos! 
Houve um ligeiro murmúrio de pasmo entre a comitiva. El-rei D. Dinis, diante de tão grande prodígio, olhava atónito para as flores e para as mãos da rainha, sem conseguir pronunciar uma palavra. Estava certo de que acontecera algo de sobrenatural. Algo de estranho que o impressionava e confundia. E só momentos depois conseguiu sorrir e murmurar: 
— Perdoai-me, Senhora, se vos ofendi... Mas nunca pensei ver rosas tão lindas neste tempo! 
Ela sorriu-lhe meigamente. Havia felicidade no brilho dos seus olhos, na suave expressão do seu rosto, no bondoso sorriso dos seus lábios. Cumprimentando-a com galhardia, o rei afastou-se, deixando que a rainha seguisse o seu caminho. 
Então, de novo, Dona Isabel elevou os olhos ao Céu. O seu ar harmonioso e a paz que resplandecia do seu rosto entraram na própria alma de quantos compunham a sua comitiva. Ninguém se atrevia a falar, a fazer um gesto sequer. Sentiam a solenidade do momento com uma alegria interior de difícil exteriorização. 
Foi a própria rainha quem deu o sinal de continuar a marcha a caminho do mosteiro de Santa Clara. Lá a esperavam os desgraçados que viviam das esmolas da sua mão benfeitora, do seu olhar carinhoso, da sua palavra tão cheia de consolação. E lá estavam também os altares, esperando a sua graciosa ajuda. 
Daí a pouco já toda a cidade de Coimbra se encontrava ao corrente do estranho prodígio que representava o pão e o dinheiro transformados em rosas. O povo, proclamava, de lágrimas nos olhos: «Foi um milagre! Foi um milagre! É santa a nossa rainha! Bendito seja Deus que a deu ao nosso reino!» 
E o povo, gente grande com alma de menino, dentro das suas inesperadas reacções, é aquele cuja voz deve ecoar no Céu. 
Assim, saltitando de boca em boca, o milagre das rosas chegou até nós e continuará para além dos séculos.

LENDA DO MILAGRE DE ORIQUE
Muito se tem falado, discutido e escrito sobre o já famoso milagre de Ourique. Porém, a nós, interessa-nos apenas o verdadeiro aspecto lendário de cada história — aquele meio-termo que se situa sempre entre a realidade e o sonho, entre o natural e o sobrenatural, entre a banalidade das coisas correntes e a poesia das coisas raras. Por essa razão, voltando as costas às polémicas acesas em torno do caso, vamos contar aqui apenas a lenda — sem dúvida uma das mais belas lendas de Portugal. 
A batalha de Ourique tem sido considerada por muitos «a pedra angular da monarquia portuguesa». Diz-se que foi aí que pela primeira vez os nobres aclamaram Afonso Henriques rei de Portugal.

Fins de Julho de 1130. Afonso Henriques, já com a retaguarda coberta por castelos e cidades cristãs, já na posse de Leiria, de Ourém, Penela, Almourol, Zêzere e Cera — que depois adoptou o nome de Tomar — julgou-se apto a poder aventurar-se pelo território dos mouros, levando as suas armas pelo Alentejo, talvez na direcção de Silves. Reuniu os seus homens e lançou-se ao caminho. 
A notícia desta agressão do infante D. Afonso fez tremer de receio Ismael ou Ismar, que então governava esta parte da Península ainda em poder dos sarracenos. Imediatamente ele convocou os chefes e guerreiros de Sevilha, Badajoz, Elvas, Évora e Beja, bem como os de todas as praças fortes até Santarém. E os sarracenos acorreram de toda a parte. Os exércitos marchavam um contra o outro. Mas por alturas do Campo de Ourique fez-se alto de ambos os lados. Então, João Fernandes de Sousa, camareiro do infante, apressou-se a entrar na tenda do seu senhor. D. Afonso Henriques parecia dormitar, tendo sobre os joelhos o Velho Testamento. 
— Senhor... Perdoai-me se vos acordo... 
D. Afonso Henriques nem pestanejou. Aflito com o rumor dos homens, lá fora, pois começavam a recear a multidão enorme de mouros que estava em frente e à vista, João Fernandes tocou no ombro do vencedor da batalha de S. Mamede. 
— Acordai, Senhor meu! 
O Velho Testamento caiu no chão. D. Afonso Henriques olhou o seu camareiro como se o tivesse visto pela primeira vez: 
— Que me quereis? Estava a dormir... e a sonhar... 
— Perdoai-me se vos interrompi... Mas está lá fora um homem velho que vos quer falar. 
— Donde vem? 
— Vem daqui perto e insiste em ser recebido por vós. 
— Se é cristão, pode entrar. 
— Está aqui, meu Senhor. 
E voltando-se para o velho, João Fernandes indicou com a mão direita a entrada da tenda. 
— Por aqui. E não vos demoreis! 
O velho entrou, olhando fixamente Afonso Henriques. Este, porém deu quase um salto no escabelo onde estava sentado. 
— Senhor! Acabo de vos ver em sonhos! Que me quereis? 
— Dizer-vos, Senhor, que deveis ter bom coração, porque vencereis e não sereis vencido. Sois amado do Senhor, porque sem dúvida Ele pôs sobre vós e sobre a vossa geração os olhos da Sua Misericórdia, até à décima sexta descendência, na qual se diminuirá a sucessão. Mas nela, assim diminuída, Ele tornará a pôr os olhos e verá! Ele me mandou dizer-vos que na noite que se seguirá a esta, se ouvirdes a sineta da minha ermida, na qual vivo há sessenta e seis anos, guardado no meio dos infiéis por alto favor de Deus — pois, como ia dizendo, se ouvirdes a sineta, deveis sair fora do arraial, sozinho. 
D. Afonso arriscou: 
— Devo sair de noite, sem companhia? 
O velho voltou à sua fala serena: 
— Sim, saireis sozinho, porque Ele vos quer mostrar a Sua grande Piedade. 
— Senhor! Se sois um embaixador de Deus, eu vos venero e sabei que tudo farei para ser digno de tão grande mercê! 
Sem mais palavras, o velho saiu da tenda. D. Afonso veio aliás dele. Em breve o perdia de vista. Entretanto, inquietos, os soldados discutiam. Logo se aproximou João Fernandes. Afonso Henriques perguntou-lhe: 
— Que dizem os nossos homens? 
— Acham uma temeridade o que ides fazer, Senhor! Os sarracenos têm aqui cinco reis e cinco exércitos para nos combaterem! 
— Reúne-os! Quero falar-lhes. 
Era quase noite quando D. Afonso Henriques se dirigiu aos seus homens: 
— Companheiros! Nem paz, nem trégua, nem fuga se nos consente! É infalível, o pelejar aqui. Cinco exércitos nos cercam. Nós não poderemos ter mais socorros além daquele que nos vier de Deus. Mas n’Ele confio! Ele, Senhor de todos os exércitos, estará connosco! E connosco Ele vencerá em nós, e nós sobre esses homens que O não aceitam porque O não conhecem! Na madrugada de amanhã será a batalha. Encomendemos pois a Deus, esta noite, a nossa causa! E entretanto... esperemos que a hora soe! 
Os homens entreolharam-se, sem saberem que dizer. Acreditavam no seu chefe e acreditavam na causa que os trouxera ali. Todavia, a vista da massa imensa do inimigo, muito maior do que eles em número, punha nesses homens um certo receio, perfeitamente humano... 
O dia seguinte decorreu sereno. A noite chegou. Nem cá nem no arraial fronteiro havia movimento de tropas. Observava-se um silêncio enervante. De repente, esse silêncio foi cortado pela voz dorida de um sino que tangia ao longe. D. Afonso Henriques, curvado numa oração muda, ergueu-se e dirigiu-se lentamente para fora do arraial. A mão na espada, o olhar vivo e atento, D. Afonso Henriques caminhou sozinho. Já fora das vistas dos seus homens e em plena escuridão, o jovem chefe guerreiro deu conta de um raio resplandecente que surgia do seu lado direito. D. Afonso estacou. Mas o raio de luz foi alargando, alargando iluminando tudo em redor. De súbito, D. Afonso Henriques distinguiu o Sinal da Cruz mais resplandecente que o Sol e Jesus Cristo crucificado nela. De um lado e de outro, grupos de anjos, vestidos de branco, de um branco que resplandecia também! 
O coração de D. Afonso Henriques bateu forte. Num gesto rápido, atirou para o chão a espada e o escudo. Descalçou-se em sinal de vassalagem e lançou-se de bruços, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. O peito arfante, nem atinava com o que queria dizer. 
— Senhor!... Por que me apareceis?... Que me quereis dizer?... Desejareis, por ventura, acrescentar fé a quem tanta traz no peito? Se o inimigo Vos pudesse ver, como eu Vos estou vendo, talvez esse pudesse acreditar em Vós! Por mim, creio que sois Deus Verdadeiro, Filho da Virgem e do Padre Eterno! 
Calou-se D. Afonso Henriques. Ergueu um pouco o busto, olhando uma vez mais a cruz levantada da terra cerca de dez côvados. E então a voz do Senhor fez-se ouvir, serena e bela: 
— Afonso! Não te apareci deste modo para acrescentar a tua fé em mim, mas para fortalecer teu coração neste conflito, e fundar os princípios do teu reino sobre pedra firme. Confia, Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas todas as outras em que pelejares contra os inimigos da minha Cruz. Vai! Vai, que acharás a tua gente alegre, esforçada para a peleja, e pedir-te-ão que entres na batalha com o título de rei. Não ponhas dúvida! A quanto te pedirem, deves conceder facilmente. Eu sou o fundador e destruidor dos reinos e impérios. Em ti e teus descendentes, quero fundar para mim um império, por cujo meio seja meu nome publicado entre as nações mais estranhas. E para que teus descendentes conheçam quem lhes dá o reino, comporás o escudo de tuas armas com o preço com que eu remi o género humano. Olha para o meu corpo e contempla as minhas chagas! A elas juntarás o preço com que fui comprado aos Judeus. Assim esse reino ser-me-á santificado, puro na fé e amado por minha Piedade! 
Calou-se, o Senhor. Os anjos vestidos de branco luzente sorriam. Então D. Afonso Henriques tentou dizer algo: 
— Senhor!... Por que méritos me mostrais tão grande misericórdia? Olhai na verdade para os meus sucessores e guardai salva a gente portuguesa! Se acontecer que tenhais contra ela algum castigo, executai-o antes em mim e em meus descendentes, e livrai este povo que amo como único filho! 
De novo a voz do Senhor voltou a cortar a escuridão e o silêncio: 
— Não se apartará deles nem de ti nunca a minha Misericórdia, porque por sua via tenho em vista grandes searas e a eles escolhidos por meus segadores em terras mui remotas. E agora, volta para a tua tenda. Um novo caminho vai abrir-se! 
Calou-se a voz e desapareceu a luz. Um silêncio quase aflitivo deu o braço à escuridão. D. Afonso Henriques ergueu-se. A hora devia ir avançada e no arraial já talvez tivessem dado pela sua ausência. Tomou o escudo e a espada, e voltou serenamente para a sua tenda. Ao chegar, João Fernandes de Sousa e mais três homens da sua confiança esperavam-no com certa impaciência. 
— Senhor, como tardastes! 
— Estai calmos, que a vitória será nossa. Como estão os nossos homens? 
— Bem, Senhor. Ansiosos que a manhã chegue para que seja dado o sinal de combate! 
— Pois se estão assim ansiosos, ide reuni-los e prepará-los. Iniciaremos a luta antes mesmo que a manhã desponte! 
A batalha travou-se, dura. Desde as primeiras horas da manhã até à noite que os soldados de D. Afonso viam chegar hordas de sarracenos, como se fossem em número jamais capaz de extinguir-se. O arraial era acometido por todos os lados; e dir-se-ia que a sorte não ficaria com eles, quando um troço de cavalaria escolhida, caindo sobre a primeira coluna sarracena, a separou do resto do exército, dizimando-a. Perto, andava Ismael, que ao ver completamente derrotada a sua primeira coluna e vendo o arrojo com que os portugueses lutavam, indiferentes ao perigo, prontos a vencer ou a morrer, encheu-se de um pavor súbito e fugiu. Então o resto do exército, vendo em fuga o seu rei, seguiu-o em debandada. As forças portuguesas foram-lhe no encalço. 


O desbarato dos sarracenos foi total. Um monte de cadáveres cobria o terreno desde Ourique até às Cabeças de Reis — onde os cinco reis mouros foram degolados. E em campo aberto, loucos pela vitória, os homens de D. Afonso Henriques aclamaram-no rei pela primeira vez! E ali mesmo o primeiro rei de Portugal resolveu que a bandeira portuguesa passasse a ter cinco escudos em cruz, representando os cinco reis vencidos e as cinco chagas de Cristo, carregadas com os trinta dinheiros por que Judas vendeu o Redentor. A 25 de Julho de 1139, a vitória de Ourique impôs para todo o sempre as cinco quinas na bandeira de Portugal!


A LENDA DA SERRA DA ESTRELA

Contava a lenda que havia um rei ao qual chegou a notícia de que todas as noites um pastor do alto da serra conversava com uma estrela.
O rei mandou logo chamar o pastor e ordenou-lhe que lhe desse a sua estrela, prometendo em troca dar-lhe muitas riquezas e muitos dos seus bens.
O pastor não aceitou, pois preferia ser pobre do que perder a sua estrela. Ao voltar à sua pobre cabana no alto da serra, o pastor ouviu uma doce melodia que era a sua estrela a cantar. Ela estava com receio de que o pastor se deixasse levar pela ambição da riqueza.
O pastor ficou todo contente e a estrela prometeu que sempre seria sua amiga.
Então o velho pastor exclamou:
– De hoje em diante, esta serra há-de chamar-se Serra da Estrela.
Conta a lenda que no alto da serra ainda hoje se vê uma estrela que brilha de maneira diferente das outras estrelas, como que à procura do bom e velho pastor amigo.


LENDA DO MILAGRE DA NAZARÉ

O velho rei ergue a cabeça e olha. Olha e pensa. Pensa e revolta-se. Não se conforma com estar ali, quedo e aborrecido, enquanto seu filho Sancho anda correndo aventuras e perigos no Alentejo e no Algarve. E também enquanto o seu fiel D. Fuas Roupinho se bate, decerto como o valente que sempre é, em Porto de Mós, defrontando um inimigo muito superior em número e em forças... 
Não, não está certo! D. Afonso Henriques, o já velho monarca que lançara as raízes do novo reino de Portugal, não pode esconder a sua impaciência.
 
Estamos no ano de 1180. Mais ou menos a meio do ano. Ficara combinado que el-rei não saísse de Coimbra sem que chegassem notícias de Porto de Mós, ou algum mensageiro dos campos do Alentejo e do Algarve, por onde D. Sancho passeava a sua ânsia de conquista. Mas para D. Afonso Henriques essa espera é longa demais. Para entreter a sua impaciência, percorre a largos passos as câmaras da alcáçova de Coimbra, que já caíra em seu poder. Assoma a uma janela e exclama: 
— Porém, que posso eu fazer... senão esperar? Que Deus se amerceie do meu bom Fuas Roupinho e que ele volte depressa à minha presença! 
O rei de Portugal retoma o seu passeio. Agitado e inquieto. Não é homem para estar parado. Não é homem para aguardar serenamente os acontecimentos. 

De súbito, um clamor inesperado corre pelas ruas, espalha-se pela cidade e acaba invadindo o próprio paço. 
Os sentidos do velho monarca ficam alerta. Será um novo ataque dos mouros? 
A resposta não tarda a chegar, com o clamor alegre do povo. Clamor que sobe pela Couraça de Coimbra e que se precipita irresistivelmente ao encontro do velho rei. 
E com o clamor vem D. Fuas Roupinho, alcaide de Porto de Mós, trazendo atrás de si um rebanho de mouros, prisioneiros e taciturnos. 
— Bravo D. Fuas... Cheguei a recear por vós. 
As palavras de el-rei são sinceras, e nelas se mistura a admiração e a amizade. 
D. Fuas ajoelha respeitosamente aos pés do rei. Depois ergue-se e diz: 
— Senhor, a mihha carne pode ser já velha, mas a moirama ainda não arranjou lanças capazes de me matar... 
D. Afonso Henriques sorri. 
— Sois sempre o mesmo, D. Fuas! Nem os anos nem as canseiras conseguem quebrantar vossa alma de lutador. 
D. Fuas sorri também, ao responder: 
— Aprendi convosco, Senhor! Com tal mestre, pena seria que eu saísse mau discípulo... 
Foi a vez de rirem ambos. Sentando-se, e convidando D. Fuas a sentar-se, o rei de Portugal pede a D. Fuas que lhe conte tudo quanto se passara.
 
Em breves e simples palavras, D. Fuas Roupinho conta essa grande aventura. 
Em certo momento, talvez porque ousara infiltrar-se demais no campo inimigo, vira-se cercado por forças muito superiores às suas. Reflectira um pouco. Desafiar o inimigo à luz do dia, seria imprudência. Valia mais esperar pela noite... 
Assim, quando a noite chegou, arrastados por D. Fuas, os portugueses, poucos embora, num desses lances temerários em que a audácia esmaga o número, caíram de surpresa sobre os mouros, dominando-os por completo... 
D. Afonso Henriques escuta-o em silêncio. Mas os olhos d’el-rei exprimem o seu contentamento. 
D. Fuas Roupinho manda então que ali mesmo amontoem aos pés do rei de Portugal as armas, as bandeiras e os tesouros que a sua bravura e a dos seus homens tinham sabido conquistar. 
Depois, manda que tragam também, pálido e desalentado, o próprio rei mouro Gamir, comandante do exército inimigo. 
— Senhor meu rei... Aqui tendes igualmente a vossos pés, Gamir, rei infiel de Mérida, o qual ousou desafiar o vosso poder… Agora, ele é apenas vosso prisioneiro. 
O rei mouro deu um passo em frente. 
— Tu... Tu és esse Iben Erik de que tanto se fala?... 
Faz-se mais pálido. A sua voz transforma-se num murmúrio. 
— Agora compreendo!... Com um chefe como tu... com cavaleiros como os teus... nada mais poderemos fazer... Que Alá nos proteja!... Vamos perder todas as nossas terras... todos os nossos tesouros!... 
E sem forças para mais, Gamir cai redondo no solo, enquanto um grito aflitivo ecoa pela sala. 
— Pai!... Meu querido pai!... 
Soldados adiantam-se para separar a jovem que se abraçou ao velho rei mouro, chorando convulsivamente. Mas D. Afonso Henriques suspende-os com um gesto. E logo ali ordena que sejam retiradas as correntes que manietam os dois vencidos, e que passem a ser tratados como verdadeiros cristãos, entregues à guarda de D. Fuas Roupinho. 

Entretanto o tempo vai passando, e D. Fuas Roupinho recebe novos encargos do seu rei e senhor. Assim, por incumbência dele, dirige-se a Lisboa, onde apronta uma frota destinada a perseguir as galés sarracenas que infestam o mar. 
Pela primeira vez na História, os Portugueses saem a lutar sobre as ondas do oceano. E embora ainda sem grande experiência, conseguem vencer declaradamente os Mouros, sem dúvida muito mais experimentados em batalhas marítimas, travadas ao longo da costa africana. 

Foi esta a primeira grande vitória naval dos Portugueses. Animados pelo próprio triunfo, atrevem-se a ir mais longe. Sempre sob o comando do intrépido D. Fuas Roupinho, primeiro almirante de Portugal, avançam até às águas de Ceuta, depois de terem percorrido triunfalmente toda a costa do Sul. E de Ceuta voltam, trazendo apresadas inúmeras embarções mouras.  
A corte portuguesa veste galas para acolher D. Fuas Roupinho e os seus homens. O rei Afonso abraça o almirante vitorioso e diz-lhe: 
— Ide para Porto de Mós, D. Fuas. Caçai e folgai a vosso gosto, que bem ganhastes o direito a descansar dos trabalhos da guerra. 
Sem mostrar alegria nem tristeza, D. Fuas limita-se a dizer: 
— Cumpro sempre as vossas ordens, sejam elas quais forem, Senhor!
 
Reza a tradição que, no dia seguinte, D. Fuas se encaminhou para Porto de Mós. E que ali encontrou a jovem princesa moura chorando a morte de seu pai. 
Mal vê o alcaide, corre para ele. 
— Senhor, senhor, nem sei como agradecer-vos... Mas o senhor meu pai pediu-me que o fizesse, mal vos visse... Fostes tão bom para ele e para mim! 
D. Fuas Roupinho não consegue esconder a emoção. 
— Graças, princesa. E conformai-vos com paciência. Foi Deus que assim o quis! 
Ela ergue para ele os olhos, vermelhos de tanto chorar.
— Deus?... Dissestes Deus?... 
E logo, num desabafo íntimo, acrescenta: 
— Gostaria de conhecer o vosso Deus... E muito em especial a Mãe desse Deus, que dizem ser tão bom e tão generoso... 
De novo, a emoção passa pelos olhos de D. Fuas Roupinho. As suas mãos acariciam os longos e negros cabelos da jovem princesa moura. E promete: 
— Amanhã mesmo te levarei a ver a Sua Imagem... uma imagem que eu venero!
 
Cumprindo o prometido, manhã cedo, D. Fuas Roupinho leva consigo a jovem princesa moura e vai mostrar-lhe a imagem de Nossa Senhora, entre duas rochas, na Nazaré. 
Pela primeira vez na sua vida, a filha do rei Gamir cai de joelhos diante de uma imagem cristã. 
— É linda a Vossa Senhora... Muito linda! 
E D. Fuas Roupinho conta-lhe então, docemente, a história maravilhosa daquela imagem.  
Um monge grego fugira com ela para Belém de Judá, dando-a a São Jerónimo. Este, por sua vez, mandara-a a Santo Agostinho. E Santo Agostinho entregara-a ao Mosteiro de Cauliniana, a uns doze quilómetros de Mérida. Aí puseram à imagem o nome de Nossa Senhora da Nazaré, por ela ter vindo da própria terra natal da Virgem Maria. 
Quando os mouros derrotaram os cristãos, obrigando o rei Rodrigo a fugir para Mérida, Rodrigo levou consigo a preciosa imagem. Mas nem mesmo assim se sentiu absolutamente seguro. E resolveu fugir de novo, agora na companhia do abade Frei Romano, possuidor duma preciosa caixa de relíquias que pertencera a Santo Agostinho. 
Após uma aventura dramática, quase mortos, os dois homens chegaram ao sítio da Pederneira, na costa do Atlântico. Então, resolveram separar-se. 
Rodrigo ficou no monte que se chama de São Bartolomeu e Frei Romano foi viver para o monte fronteiro. 
Combinaram, porém, corresponder-se por meio de fogueiras, que acendiam à noite. 
Mas, certa noite, a fogueira de Frei Romano não se acendeu. Não mais se acenderia! 
Rodrigo acudiu inquieto, e foi encontrá-lo morto. Apavorado, escondeu a imagem e a caixa de relíquias numa lapa, e abalou dali, correndo como um doido. 
Segundo conta ainda a tradição, veio a morrer perto de Viseu, num sítio denominado Fetal... 
Concluindo a sua história, D. Fuas Roupinho acrescenta, olhando a imagem: 
— Só há bem pouco tempo alguns pastores a descobriram, e eu logo me tornei num dos seus maiores devotos. Venero-a com todas as forças da minha alma. 
A jovem princesa parece alheada e distante. Olhos fitos na imagem, repete como em oração:
— É linda, a Senhora!... É linda, a Senhora!... 
D. Fuas afaga-lhe a cabeça e diz-lhe meigamente: 
— Olha, minha filha... Podes ficar aqui a adorá-la o tempo que quiseres. Eu vou caçar. Depois, voltarei a buscar-te. 

E é então que se passa algo de extraordinário. 
D. Fuas Roupinho monta e galopa pelo campo, quando vê de repente passar junto de si um vulto negro e estranho... É um veado! — pensa ele... Um veado, com certeza! 
Sente-se feliz. Não poderia começar melhor a sua caçada. Para mais, um veado como nunca vira em toda a sua vida. Esporeia mais o cavalo. Não pode perder presa de tanto valor... Como num desafio, o veado torna a passar junto dele. Uma vez. Duas vezes. D. Fuas Roupinho sente irromper todo o seu brio. Pois um herói como ele, um homem habituado aos combates mais árduos, vai perder uma tão formidável peça de caça? Nunca! Há-de apanhar o veado, custe o que custar. Esporeia o cavalo até fazer sangue e aproxima-se da presa. Já falta pouco. Está quase a alcançá-lo... De lança em riste, já canta vitória... 
Mas, de repente, vê a terra desaparecer sob as patas do cavalo... Está à beira dum precipício, a pique sobre o mar!... Um brado aflitivo sai-lhe da garganta, enquanto o cavalo se empina, relinchando desesperadamente, e o veado se some no espaço, desfazendo-se como fumo: 
— Virgem Santíssima, valei-me! Valei-me, minha Nossa Senhora da Nazaré! 
Por um instante (parece uma eternidade) cavalo e cavaleiro lutam sobre o abismo. Mas a Virgem ouvira decerto o apelo angustiado de D. Fuas Roupinho. E ele salva-se. Por milagre. Por autêntico milagre! 
Nas rochas, ficam marcadas as patas traseiras do cavalo, sinais que ainda hoje ali se podem ver.  
D. Fuas corre ao local onde deixara a jovem princesa junto da imagem de Nossa Senhora. Encolhida a um canto, trémula, o rosto banhado em lágrimas, ela mostra-se aliviada ao vê-lo regressar. 
— Oh, senhor, tive tanto medo!... Ainda bem que voltastes!... Passou por aqui um animal medonho... Parecia o Génio do Mal! 
— Bem sei... Bem o vi... 
E sem mais palavras de momento, o cavaleiro desmonta e ajoelha, rezando fervorosamente, a agradecer à Virgem o auxílio que lhe prestara. De que lhe serviria, afinal, ser um herói como era, se não tivesse a seu lado a protegê-lo a presença milagrosa de Nossa Senhora da Nazaré? Esse, sim, era o maior de todos os prodígios! 
E enquanto se ergue, respirando fundo, como que a afastar os últimos temores, D. Fuas Roupinho confessa serenamente: 
— Sim, jovem princesa… O monstro que passou por aqui, transformado em veado, era o próprio Demónio... Estive prestes a morrer, tentado por ele, mas Nossa Senhora salvou-me! 
E, com súbito entusiasmo, acrescenta: 
— Hei-de levar esta imagem para o local do milagre, para o sítio onde tudo aconteceu... Lá ficará, pelos séculos fora, como símbolo do misericordioso poder da Virgem! 
E logo dali sai a cumprir a promessa. Às ordens de D. Fuas Roupinho — e, segundo se diz, ajudando-os por suas próprias mãos — pedreiros de Leiria e de Porto de Mós constroem a Capela da Virgem num sítio chamado da Memória, em memória de tão extraordinário milagre que salvara o almirante português de morte certa e brutal. 
E a imagem da Virgem Nossa Senhora da Nazaré lá continua a invocar a lenda, atraindo todos os anos milhares e milhares de fiéis, por ocasião das afamadas e tradicionais festas da vila.

LENDA DAS AMENDOEIRAS EM FLOR

E tal como ontem… como hoje... como amanhã… a brisa da vida que passa levará o eco da mesma voz, a repetir sempre e sempre o amoroso começo das histórias que o povo guarda no seu coração: Era uma vez... 
 
Pois era uma vez, há muitos e muitos séculos, antes de Portugal ter nascido para a história do mundo… Então, ainda o Al-Gharb pertencia completamente aos Árabes ou Mouros (como nós lhe chamamos, por terem vindo da Mauritânia) e possuía a sua zona de maior importância na região de Al-Faghar, cuja capital era a sumptuosa e remota Chelb, a cidade de Silves…
 
Reinava, com toda a fama da sua valentia e com a força do seu poderio, o famoso Ibne-Almundim, guerreiro protegido excepcionalmente por Alá, porque nunca conhecera a derrota. Era muito novo, sim, mas já o consideravam, e com toda a razão, o mais temido dos reis mouros do seu tempo. O mais temido e o mais destemido de todos eles!
Ora, aconteceu um dia que, entre os prisioneiros de uma terrível batalha, surgiu uma linda princesa, muito loira, de olhos azuis e de porte altivo. Um tipo de beleza que, na verdade, o rei mouro nunca vira até então. 
E logo mandou que a trouxessem à sua presença. 
— Como vos chamais?
Ela olhou-o serenamente. E serenamente respondeu: 
— Gilda, Senhor. O meu nome é Gilda.
Foi a vez dele sorrir. Um sorriso confuso. 
— Gilda? Que nome estranho!...
Depois, num repente, inclinou-se para ela. 
— Melhor é que vos chame apenas «a bela Princesa do Norte»… Gostais? 
Gilda limitou-se a retorquir, num leve encolher de ombros. 
— Sou vossa prisioneira, Senhor… 
Fez uma breve pausa e rematou, entre dois suspiros: 
— Vossa prisioneira… e vossa escrava. 
Mas ele ergueu-se e exclamou com voz emocionada: 
— Enganais-vos!... A partir deste instante, sois livre… inteiramente livre! 
E abarcando com o olhar e com a voz todos os outros que o rodeavam, ajuntou em tom forte e autoritário, para que o escutassem bem: 
— Libertem-na!... Que ninguém se atreva a tocar-lhe!... Ela poderá ir para onde quiser e fazer tudo quanto lhe apeteça! Ouviram?... Compreenderam?... Espero que sim! 
Depois, num gesto de galanteria, voltou-se para Gilda e disse, já com voz branda: 
— Senhora… Como vedes, não sois mais prisioneira nem escrava… Mas continuais a ser «a bela Princesa do Norte»! 
Um sorriso bonito aflorou aos lábios de Gilda. Sorriso de gratidão e de simpatia. E também de confiança. Foi a sua resposta. A sua única resposta. E poderia ser melhor?... 

E o certo é que esse rei, alegre e folgazão, valente e dominador, passou a andar taciturno, apreensivo, com largas crises de mau humor. Havia qualquer coisa nele que não era habitual. Andava obcecado por um pensarnento. Pensamento que ardia no seu íntimo e que o devorava lentamente, muito lentamente. 
O rei mouro sentia o desejo, a necessidade de voltar a ver Gilda, de lhe falar, de a ouvir… E esse momento não se fez demorar muito…
 
Foi encontrá-la, preparando-se para voltar à sua terra. 
Ele não escondeu a tristeza que o invadia. 
— Sempre teimais em ir embora, bela Princesa do Norte? 
Gilda voltou a sorrir o seu sorriso bonito. Bonito e meigo. 
— Não é teima, Senhor. É unicamente a vontade de voltar à minha terra... 
Ele aproximou-se mais. 
— E é assim tão forte... tão grande, essa vontade… que não vos deixa ler nos meus olhos aquilo que os meus lábios não se atrevem a dizer? 
Surpreendida (ou fingindo-se surpreendida), Gilda olhou de frente para o rei mouro. Olhar profundo, investigador. 
— Como, Senhor?... Que dizeis?... Não vos compreendo... 
Ibne-Almundim, o invencível rei mouro, corou como se fosse um simples garoto enamorado. E a sua voz tremeu. 
— Pena tenho que assim suceda... Mas a verdade é que deveis possuir alguma coisa de magia... Mesmo longe de mim vos tenho sentido perto, Gilda! 
Ambos suspiraram. Depois ele perguntou vagarosamente. 
— Ouvistes como eu disse agora o vosso nome... Gilda? 
E ela ruborizou-se também, e a sua voz tremeu. 
— Pareceu-me tão doce, que quase não o conheci... 
O rei mouro ganhou de súbito novos entusiasmos. As suas mãos prenderam as mãos de Gilda. 
— E quereis saber porquê?... Disse o vosso nome mais com o coração do que com os lábios! 
Um murmúrio saiu dos lábios de Gilda: 
— Senhor... 
Mas já ele, revigorado pela esperança, deixava que a febre do amor se apossasse da sua voz e dos seus gestos. 
— Para quê disfarçar, Gilda?... Eu não quero... eu não posso deixar-vos partir... Ficai, Gilda, ficai! Peço-vos! Vós sereis minha mulher! 

E desde então se diz que se realizaram por tal motivo festas de um aparato invulgar. O casamento de lbne-Almundim, o jovem e poderoso rei mouro do Al-Faghar, com Gilda, a bela e cativante Princesa do Norte, atraiu gente de todos os lados. Chelb viveu horas extraordinárias de alegria e de prazer. Vieram preciosas oferendas. Vieram trovadores e músicos de terras distantes. Vieram bailarinas de corpos esculturais, que enfeitiçavam os olhares dos homens. 
Tudo isso durou vários dias e várias noites, num crescendo de entusiasmo... 

Foi precisamente no meio da festa do último dia, quando a alegria estava no auge, que o rei mouro deu pela falta de Gilda, a bela Princesa do Norte, que era já a sua esposa. 
Ao primeiro momento de espanto seguiu-se uma crise violenta de fúria. 
— Gilda! Gilda!... Onde está Gilda? 
E como os outros o olhassem, sem responder, o rei mouro ordenou, num berro: 
— Procurem-na, imbecis!... Descubram-na!... Ai de vós se não a encontrais, ai de vós! 
Seguiu-se um tumulto enorme por todo o palácio. Apavorados com a ameaça do rei, os seus vassalos depressa deram com o paradeiro de Gilda, a bela Princesa do Norte... 
Estava doente, quase morta, estirada no leito, ainda mais loura e pálida do que habitualmente e com os seus lindos olhos azuis inundados de lágrimas. 
Mal tomou conhecimento do facto, Ibne-Almundim, como que tresloucado, correu a ajoelhar-se junto de Gilda. 
— Senhora… dizei-me o que sentis… qual a doença que vos aflige… A custo ela conseguiu voltar a cabeça para ele. Os seus olhos quiseram sorrir, mas as lágrimas não deixaram. A sua voz quis ser forte e segura, mas vacilou e tremeu. 
— Meu bom rei e senhor... não sei... não sei!... De súbito fiquei assim… Acreditai... Não sei porquê... mas pesa-me o coração... Pesa-me muito!... E custa-me a falar… Sinto que vou morrer! 
Num brado de angústia, o rei mouro agarrou-se às mãos frias da sua bem-amada. 
— Que Alá vos proteja!... É preciso que vos cureis, Gilda!... Sem vós, eu já não saberia viver!
Ela bem quis soerguer-se. Inutilmente. Caiu para trás, e a sua voz tornou-se ainda mais trémula e velada. 
— Como eu vos agradeço, Senhor... Tendes sido bom, magnânimo.. Eu queria corresponder ao vosso desejo... Porém, tudo se acabou... Já nem tenho forças para me levantar daqui... Repito-vos, Senhor... Sinto-me morrer aos poucos... 
E mergulhou numa prostração, que mais parecia a antecâmara da própria morte. Gilda deixou de ouvir. Nem as palavras, nem as súplicas, nem as lágrimas de Ibne-Almundim. Nada!
 
Num derradeiro recurso, o rei mouro deu ordem para que se reunissem urgentemente no palácio todos os sábios do reino. Eles vieram, sim, mas nada conseguiram. A bela Princesa do Norte não voltara a abrir os seus lindos olhos azuis. Tal como pressentira, continuava a morrer lentamente… 
E quando o rei mouro, abatido, desalentado — vencido pela primeira vez na sua vida! — já não tinha mais qualquer esperança e chorava sozinho a sua dor, vieram dizer-lhe que um velho prisioneiro, também das terras do Norte, antigo súbdito do pai de Gilda, queria falar-lhe. Primeiro disse que não, que não queria ver pessoa alguma. Depois hesitou, interrogando-se a si próprio: E se ele soubesse algo a respeito da doença de Gilda?... Então mandou que entrasse. 
E um velho, mirrado pelo sofrimento e pela idade, mas ainda altivo e de olhar profundo, avançou até junto de Ibne-Almundim. 
— Sei o que vos aflige, rei dos mouros. E poderei ajudar-vos... Não por vós, que fostes um tirano para o meu povo... Mas por ela, a minha linda princesa! 
O outro olhou-o desconfiado. 
— E que sabes tu de doenças, para a poderes salvar, quando os outro já fracassaram? És sábio, também? 
O velho sorriu levemente e retorquiu com galhardia. 
— Não sou sábio, não, Real Senhor... Sou poeta!  
O punho fechado do rei mouro descarregou um soco violento sobre o braço da cadeira em que se sentava. 
— Poeta?... E para que me serve a poesia neste momento? 
Ousado, o velho prisioneiro deu um passo em frente e a sua voz não perdeu a calma. Pelo contrário, tornou-se mais segura. 
— Para vos abrir os olhos, Senhor, já que teimais em tê-los fechados diante da luz da Verdade... 
Furioso, o rei mouro levantou-se. 
— Que dizes? 
E foi ele que avançou agora para o velho prisioneiro. Severo. Ameaçador. Cruel. 
— Pois escuta. Já que pensas assim, vou propor-te um dilema. Se salvares a rainha, ficarás livre para sempre e encher-te-ei de ouro, de muito ouro... Mas se não a salvares, espera-te a morte mais horrível que possas imaginar! 
Espantosamente calmo, como se nada fosse com ele, o velho poeta das terras do Norte disse apenas: 
— Estou pronto, Senhor. Levai-me junto da minha princesa. 
Aturdido por tamanha confiança, o rei mouro não hesitou nem mais um momento. E conduziu o velho pelos corredores do palácio, até à alcova onde Gilda agonizava, morrendo aos poucos... 

Ambos ficaram olhando a bela princesa adormecida. Olhando em silêncio. E em silêncio pensando: Que imagem maravilhosa, apesar do cenário de dor que a rodeava! Pálida e loira, parecia um anjo adormecido! 
Ainda em silêncio, o velho poeta das terras do Norte avançou devagar, debruçando-se sobre Gilda. Assim esteve alguns minutos. Rezando? Meditando? Esperando?... Não se sabe... Sabe-se, sim, que ao fim desses minutos de dramática expectativa, Gilda reabriu os olhos. E voltou a sorrir! E voltou a falar! 
— Meu pobre poeta, também tu!... Isto é mal que não tem cura, com certeza! Não achais? 
E a voz do velho poeta, calma, serena, encheu todo o aposento: 
— Não, princesa, não acho. Estais enganada. O vosso mal tem cura, mas não são os sábios que o podem curar... São os velhos poetas como eu. 
E logo, afastando-se, fez um sinal a Ibne-Almundim para que o seguisse até ao terraço. Ainda mal refeito da surpresa, sem saber que pensar ou dizer, o rei mouro assim fez. 
— Sabeis, Senhor, qual é o nome desta doença? 
O outro olhou-o ainda mais surpreendido e confuso. 
— Não… Não sei. 
O velho poeta suspirou profundamente antes de continuar. 
— Pois chama-se nostalgia, Senhor... Nostalgia! ... Ou seja, a minha bela princesa tem saudades da neve do seu país distante... Da neve que nesta altura do ano enfeita de branco os campos e as terras até onde os olhos podem alcançar… 
Voltou a suspirar e ultimou com autoridade o seu pensamento: 
— São essas saudades que a vão matando, Senhor! 
Quase tímido, o invencível rei mouro perguntou, estupefacto e receoso: 
— Saudades do seu país? Saudades da neve? 
— Sim, Real Senhor... Saudades!... Mas eu conheço o remédio para tal nostalgia, ainda que vos possa parecer estranho. 
Num impulso, o rei mouro agarrou-o.
— Diz... Diz depressa!... Correrei a buscá-lo! E não terei descanso até o alcançar! 
Mas o velho poeta voltou a sorrir. 
— Não é preciso correr, Senhor… Basta que mandeis plantar em todo o vosso reino, e muito especialmente aqui, diante do palácio, muita amendoeiras... E quando as amendoeiras florirem as suas flores brancas darão a ideia da neve aos olhos saudosos da princesa — e ela curar-se-á. 
Semicerrando os olhos, como que numa prece, Ibne-Almundim acentuou com uma voz já repleta de fé e de alegria. 
— Que se faça o que propões e que Alá te escute!
E tudo aconteceu como previra o velho poeta. Quando a Primavera chegou, as amendoeiras em flor plantadas por todo o reino de Chencir pareciam neve cobrindo os caminhos, e os campos, e as colinas!... 
Ajudada pelo braço forte do rei mouro, Gilda acedeu a levantar-se e assomar à janela do terraço. Mas logo quedou espantada, estática, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam. 
— Será possível?... Isto é neve… a neve de que eu tinha tantas, tantas saudades!... Como isto é lindo! E como eu sinto ganhar forças, de repente! 
Agarrou-se amorosamente ao braço de Ibne-Almundim. 
— Sim, meu rei e senhor bem-amado... Já não tenho medo de morrer… Já não me pesa o coração... Já me sinto como era antigamente! 
E emocionado também, estreitando-a num amplexo de amor, ele afirmou, com júbilo sincero: 
— Estais curada, Senhora, que eu bem vejo! O velho poeta tinha razão e Alá ouviu as minhas súplicas!... Daqui em diante, acreditai, o nosso amor será eterno! 
Deixando-se enlaçar docemente, Gilda, a bela Princesa do Norte, confessou baixinho: 
— Tendes razão, meu senhor!... Somente me posso mostrar grata se vos dedicar um amor eterno! E eu prometo... 
Mas nada mais conseguiu dizer. As restantes palavras fundiram-se num beijo grande e profundo. Num beijo de verdadeiro amor! 

Ajunta ainda a voz da tradição que todos os anos a rainha e o rei esperavam alvoroçadamente pelo maravilhoso espectáculo das amendoeiras em flor — que substituíam assim a neve das terras do Norte. E que viveram sempre felizes e amorosos. E que o velho poeta chegou a ser um dos vultos de maior relevo na remota e sumptuosa Chelb, capital opulenta de um reino de poesia e de sonho, agora oculto entre os tesouros do passado.

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