OS MEUS POETAS

Nasceu, no seio de uma abastada família alto-burguesa, sendo filho e neto de militares. Órfão de mãe com apenas dois anos (1892), ficou entregue ao cuidado dos avós, indo viver para a Quinta da Vitória, na freguesia de Camarate, às portas de Lisboa, aí passando grande parte da infância.

Inicia-se na poesia com doze anos, sendo que aos quinze já traduzia Victor Hugo, e com dezesseis, Goethe e Schiller. No liceu teve ainda algumas experiências episódicas como ator, e começa a escrever.

Em 1911, com vinte e um anos, vai para Coimbra, onde se matricula na Faculdade de Direito, mas não conclui sequer o ano. Em 1912 veio a conhecer aquele que foi, sem dúvida, o seu melhor amigo – Fernando Pessoa.

Desiludido com a «cidade dos estudantes», segue para Paris a fim de prosseguir os estudos superiores, com o auxílio financeiro do pai. Cedo, porém, deixou de frequentar as aulas na Sorbonne, dedicando-se a uma vida boémia, deambulando pelos cafés e salas de espectáculo, chegando a passar fome e debatendo-se com os seus desesperos, situação que culminou na ligação emocional a uma prostituta, a fim de combater as suas frustrações e desesperos.

Na capital francesa viria a conhecer Guilherme de Santa-Rita (Santa-Rita Pintor). Inadaptado socialmente e psicologicamente instável, foi neste ambiente que compôs grande parte da sua obra poética e a correspondência com o seu confidente Pessoa; é, pois, entre 1912 e 1916 (o ano da sua morte), que se inscreve a sua fugaz – e no entanto assaz profícua – carreira literária.

Entre 1913 e 1914 vem a Lisboa com certa regularidade, regressando à capital devido à deflagração do conflito entre a Sérvia e a Áustria-Hungria, o qual a breve trecho se tornou uma conflagração à escala europeia – a I Guerra Mundial. Com Pessoa e ainda Almada-Negreiros integrou o primeiro grupo modernista português (o qual, influenciado pelo cosmopolitismo e pelas vanguardas culturais europeias, pretendia escandalizar a sociedade burguesa e urbana da época), sendo responsável pela edição da revista literária Orpheu (e que por isso mesmo ficou sendo conhecido como a Geração d’Orpheu ou Grupo d’Orpheu),1 um verdadeiro escândalo literário à época, motivo pelo qual apenas saíram dois números (Março e Junho de 1915; o terceiro, embora impresso, não foi publicado, tendo os seus autores sido alvo da chacota social) – ainda que hoje seja, reconhecidamente, um dos marcos da história da literatura portuguesa, responsável pela agitação do meio cultural português, bem como pela introdução do modernismo em Portugal.1 Também teve colaboração em diversas publicações periódicas, nomeadamente nas revistas Alma nova2 (1914-1930) e Contemporânea3 (1915-1926), e pode-se encontrar colaboração da sua autoria, publicada postumamente, na Pirâmide4 (1959-1960) e Sudoeste5 (1935).

Em Julho de 1915 regressa a Paris, escrevendo a Pessoa cartas de uma crescente angústia, das quais ressalta não apenas a imagem lancinante de um homem perdido no «labirinto de si próprio», mas também a evolução e maturidade do processo de escrita de Sá-Carneiro.

Uma vez que a vida que trazia não lhe agradava, e aquela que idealizava tardava em se concretizar, Sá-Carneiro entrou numa cada vez maior angústia, que viria a conduzi-lo ao seu suicídio prematuro, perpetrado no Hôtel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, com o recurso a cinco frascos de arseniato de estricnina. Embora tivesse adiado por alguns dias o dramático desfecho da sua vida, numa «cart de despedida» para Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro revela as suas razões para se suicidar:

QUASE

Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar....
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá Carneiro 



Manuel Maria Barbosa du Bocage
Setúbal  1765-1805
De Bocage poderá dizer-se que ombreia com Camões na sua arte poética
No entanto, é mais conhecido por suas estroinices, e versos jocosos. Sobretudo pela sua ironia nas respostas que dava.
Conta-se que, por andar Bocage sempre pobremente vestido, andrajoso até.
alguém lhe deu um corte de tecido para que mandasse fazer um fato, á última moda.  Então el Mano Sadino, assim chamado por ter nascido em Setúbal, cidade banhada pelo rio Sado, enrolou-se no tecido e assim andava pela cidade de Lisboa. Se alguém lhe perguntava porque andava assim embrulhado no tecido, ele respondia jocoso: Estou á espera da última moda. E, lá está em Setúbal a sua estátua com o tecido ás costas
Dentro do género literário (soneto) ele escreveu sobre tudo, duma forma magistral, principalmente por ser um repentista. Eis aqui alguns dos seus Sonetos
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AUTO RETRATO

Magro, de olhos azuis, carão moreno, 
 Bem servido de pés, meão na altura, 
 Triste de facha, o mesmo de figura, 
 Nariz alto no meio, e não pequeno; 

 Incapaz de assistir num só terreno, 
 Mais propenso ao furor do que à ternura, 
 Bebendo em níveas mãos por taça escura 
 De zelos infernais letal veneno; 

 Devoto incensador de mil deidades 
 (Digo, de moças mil) num só momento, 
 E somente no altar amando os frades; 

 Eis Bocage, em quem luz algum talento; 
 Saíram dele mesmo estas verdades 
 Num dia em que se achou mais pachorrento. 

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Nascemos para Amar 

Nascemos para amar; a Humanidade 
 Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura. 
 Tu és doce atractivo, ó Formosura, 
 Que encanta, que seduz, que persuade. 

 Enleia-se por gosto a liberdade; 
 E depois que a paixão na alma se apura, 
 Alguns então lhe chamam desventura, 
 Chamam-lhe alguns então felicidade. 

 Qual se abisma nas lôbregas tristezas, 
 Qual em suaves júbilos discorre, 
 Com esperanças mil na ideia acesas. 

 Amor ou desfalece, ou pára, ou corre: 
 E, segundo as diversas naturezas, 
 Um porfia, este esquece, aquele morre. 

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Morte, Juízo, Inferno e Paraíso 

Em que estado, meu bem, por ti me vejo, 
 Em que estado infeliz, penoso e duro! 
 Delido o coração de um fogo impuro, 
 Meus pesados grilhões adoro e beijo. 

 Quando te logro mais, mais te desejo; 
 Quando te encontro mais, mais te procuro; 
 Quando mo juras mais, menos seguro 
 Julgo esse doce amor, que adorna o pejo. 

 Assim passo, assim vivo, assim meus fados 
 Me desarreigam d'alma a paz e o riso, 
 Sendo só meu sustento os meus cuidados; 

 E, de todo apagada a luz do siso, 
 Esquecem-me (ai de mim!) por teus agrados 
 Morte, Juízo, Inferno e Paraíso. 

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És dos Céus o Composto Mais Brilhante 
  
  Marília, nos teus olhos buliçosos
Os Amores gentis seu facho acendem;
A teus lábios, voando, os ares fendem
Terníssimos desejos sequiosos.

Teus cabelos subtis e luminosos
Mil vistas cegam, mil vontades prendem;
E em arte aos de Minerva se não rendem
Teus alvos, curtos dedos melindrosos.

Reside em teus costumes a candura,
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teus risos se mistura.

És dos Céus o composto mais brilhante;
Deram-se as mãos Virtude e Formosura,
Para criar tua alma e teu semblante.

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Soneto a Camões

Camões, grande Camões, quão semelhante 
 Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! 
 Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, 
 Arrostar co'o sacrílego gigante; 

 Como tu, junto ao Ganges sussurrante, 
 Da penúria cruel no horror me vejo; 
 Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, 
 Também carpindo estou, saudoso amante. 

 Ludíbrio, como tu, da Sorte dura 
 Meu fim demando ao Céu, pela certeza 
 De que só terei paz na sepultura. 

 Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!... 
 Se te imito nos transes da Ventura, 
 Não te imito nos dons da Natureza. 

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IMPROVISOS
"Aquele canta e ri; não se embaraça 
 Com essas coisas vãs que o mundo adora 
 Este (oh, cega ambição!) mil vezes chora 
 Porque não acha bem que o satisfaça."

"Ah! Se a vossa liberdade 
 Zelosamente guardais, 
 Como sois usurpadores 
 Da liberdade dos mais?"

"Faço a paz, sustento a guerra, 
 Agrado a doutos e a rudes, 
 Gero vícios e virtudes, 
 Torço as leis, domino a Terra."

"Vai sempre avante a paixão, 
 Buscando seu doce fim; 
 Os amantes são assim: 
 Todos fogem à razão."

"Ingénuo, tem conta de ti! 
 No mundo há muitos enganos 
 (Eu o sei, porque os sofri); 
 Os bons padecem mil danos 
 Julgando os outros por si."

"Amor em sendo ditoso 
 Costuma ser imprudente, 
 E nos gestos de quem ama 
 Logo o vê quem o não sente."

"Vós suspirais pela posse 
 Das externas perfeições; 
 Vós cobiçais os deleites, 
 Eu cobiço os corações."

"Por entre a chuva de mortais peloiros 
 A nua fronte enriquecer de loiros 
 Eu procuro, eu desejo, 
 Para teus mimos desfrutar sem pejo, 
 Pois quem deste esplendor se não guarnece, 
 Não é digno de ti, não te merece."

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 Soneto de Todas as Putas 

Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
 Puta tem sido muita gente boa;
 Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
 Milhões de vezes putas têm reinado:
  
 Dido foi puta, e puta dum soldado;
 Cleópatra por puta alcança a c'roa;
 Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
 O teu cono não passa por honrado:[1]
  
 Essa da Rússia imperatriz famosa,
 Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
 Entre mil porras expirou vaidosa:
  
 Todas no mundo dão a sua greta:
 Não fiques, pois, oh Nise, duvidosa
 Que isto de virgo e honra é tudo peta.

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Ó FORMOSURA!

 Piolhos cria o cabelo mais dourado;
 Branca remela o olho mais vistoso;
 Pelo nariz do rosto mais formoso
 O monco se divisa pendurado:

 Pela boca do rosto mais corado
 Hálito sai, às vezes bem asqueroso;
 A mais nevada mão sempre é forçoso;
 Que de sua dona o cu tenha tocado:

 Ao pé dele a melhor natura mora,
 Que deitando no mês pode gordura,
 Féitdo mijo lança a qualquer hora:

 Caga o cu mais alvo merda pura;
 Pois se é isto o que tanto se namora,
 Em ti mijo, em ti cago, ó formosura!

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ADIVINHAÇÃO

 É pau, é rei dos paus, não marmeleiro,
 Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
 Dá leite, sem ser árvore de figo,
 Da glande o fruto tem, sem se sobreiro:

 Verga, e não quebra, como zambujeiro;
 Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
 Branco às vezes, qual vime, está consigo;
 Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

 À roda da raiz produz carqueja;
 Todo o resto do tronco é calvo e nu;
 Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

 Para carvalho ser falta-lhe um U;
 Adivinhem agora que pau seja,
 E quem adivinhar meta-o no cu.

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Luís Vaz de Camões é considerado o maior poeta Português.
Nasceu em 1524/25, em Coimbra, na capital do Império, pouco se sabe sobre a sua família, pensa-se que  teria antecedência galega.      Diz-se que estudou em Coimbra.
 Padre Manuel Correia que o conheceu pessoalmente, diz que ele nasceu a 1517, filho de Simão Vaz de Camões e Ana de D. Fernando, estudou de 1531 a 1541.
 Até 1545 teria ido para Coimbra.
 Começou cantar as “ doces e claras aguas de Mondego”, a “florida terras” das margens, a graça feiticeira da menina dos olhos verdes .
 Em 1542 a 1545, Camões teria vindo de Coimbra para a corte em Lisboa, rico de humanidades, (ele tinha muita experiência amorosa).
Entre 1545 a 1548, em Ceuta, Luís Vaz de Camões teve de trocar as delícias e dissabores, pelo serviço militar.
Apesar de ter sido um grande poeta, foi também um grande patriota e um grande soldado. Defendeu Portugal tanto nas guerras em África, como na Ásia.
 Por volta de 1547-48, partiu para Ceuta depois de ter estado na corte de 1542 e 1543. Em Ceuta (África), perdeu o olho direito, quando lutava a favor de D. João III.  Perdeu o olho direito em Ceuta
 Entretanto houve A Grande Desordem.
A última coisa que Luís Vaz de Camões fez foi a publicação d’Os Lusíadas em 1572.
O Rei D. Sebastião concede uma tensa (um pagamento) de 15000 reis anuais com esse dinheiro Camões vai se mantendo até à morte.
 Não se sabe mais nada da sua biografia tardia em Portugal a partir de 1570, parece que foi alvo de vários epigramas, autores bem aceites na corte, o que pode significar que era invejado pela grandeza da sua obra quer pelo facto de beneficiar da pensão.
Luís Vaz de Camões faleceu no dia 10 de Junho de 1580 em Lisboa, na miséria.
Pensa-se também que a sua campa era na Igreja de Santa Ana, mais tarde destruída pelo terramoto de 1775.               
O túmulo, onde se guardam as cinzas do Poeta, encontra-se no Mosteiro dos Jerónimos (em Belém).

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Os Lusíadas - Canto I

1

As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

2

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

3

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a Musa antígua canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

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Quem diz que Amor é falso ou enganoso

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce, e é piedoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de Amor;
Todos os seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.

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              O cisne, quando sente ser chegada

O cisne, quando sente ser chegada
A hora que põe termo a sua vida,
Música com voz alta e mui subida
Levanta pela praia inabitada.

Deseja ter a vida prolongada
Chorando do viver a despedida;
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.

Assim, Senhora minha, quando via
O triste fim que davam meus amores,
Estando posto já no extremo fio,

Com mais suave canto e harmonia
Descantei pelos vossos desfavores
La vuestra falsa fé y el amor mio.

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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

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António Tomás Botto (Concavada, Abrantes, 17 de Agosto de 1897 — Rio de Janeiro, 16 de Março de 1959) foi um poeta português.
A sua obra mais conhecida, e também a mais polémica, é o livro de poesia Canções que, pelo seu carácter abertamente homossexual, causou grande agitação nos meios religiosamente conservadores da época. Foi amigo pessoal de Fernando Pessoa que traduziu em 1930 as suas Canções para o inglês, e com quem colaborou numa Antologia de Poemas Portugueses Modernos. Homossexual assumido (apesar de ser casado com uma Bejense, Carminda Alves Silva), a sua obra reflete muito da sua orientação sexual e no seu conjunto será, provavelmente, o mais distinto conjunto de poesia homoerótica de língua portuguesa. Morreu atropelado em 1959 no Brasil, para onde se tinha exilado para fugir às perseguições homófobas de que foi vítima, na mais dolorosa miséria. Os seus restos mortais foram trasladados para o cemitério do Alto de São João, em Lisboa, em 1966.

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CANÇÃO DA RUA DESERTA


Na viela anoiteceu rapidamente
Aquele rancho de crianças
Que brincavam - eram oito!
Sumiu-se... já não as vejo.
E não as oiço cantar
O giro-flé-giró-flá
Giro-flé da beira-mar.

Tão lindas! Tão pobrezinhas!
-Ó Diolinda!, Miguel!~
Ó Clementina!, Luzia!
Então o jantar?
Não ouvem?Tu não ouves, Lionel?,
Gritam as mães.
E a petizada
Numa corrida ligeira
Põe um fim na brincadeira...

Um silêncio perturbado
Pelo clarão momentâneo
De uma luz numa janela
Alastra e brilha amarelado,
Trémulo, fraco, indeciso...
Uma guitarra diz coisas
Na voz eterna do fado

-É o Chico do "Benfica"Que mora no 27
Da Rua do Paraíso.
Quando sai da oficina
E enquanto a mãe - a velhota,
Lhe prepara a paparoca,
Pega na banza e vai disto:

Afirmam que a vida é breve
Engano, a vida é comprida:
Cabe nela amor eterno
E ainda sobeja vida.

- O jantar está na mesa;
Deixa a sanfona, meu filho,
Olha que a sopa arrefece.
Diz-lhe a mãe, enternecida.
E o Chico senta-se à mesa
Indo arrumar com jeitinho
O "pianinho" da tristeza.

- Não falas?
Temos tragédia?
Mas o Chico não responde;
E mal acaba o jantar,
Vai-se deitar, sorrateiro...
E a mãe deita-se também
Depois de lavar os pratos
E de "abaixar " a torcida
No seu velho candeeiro...

Na viela a noite cai
Soturnamente cansada...
Ninguém passa, ninguém vem,
Ninguém se vê, ninguém sai...
Sombra, silêncio - mais nada!

Na baiuca da Celeste
O marido, - um entrevado,
Olha a mulher e os dois filhos
Numa expressão de abandono.
O mais pequeno adormece
Ao pé da mãe, e o mais velho
Que tem dez anos, também
Está cheinho de sono.

Comeram sardinhas fritas
E beberam água-pé;
Mas a mãe - pra rebater
Bebe um pouco de café.

Um som baço de cantiga
Paira e sobe diluído
No silêncio da viela...
No céu não brilha uma estrela

O guarda nocturno passa
E passa a mão com violência
P'la porta do carvoeiro.
Tilintam as chaves.
Palmas...

- Lá vai!
É o Zé Fragateiro
Pelo bater da mãozada.
E a noite cai -
e o silêncio...
Só o silêncio, mais nada...

A roupa do marinheiro
Não é lavada no rio;
É lavada n o mar alto
À sombra do seu navio.

- Ena!, saíu-se a Rosário!
Coitada, embala o miúdo
Um petiz de quinze meses,
E canta a pensar no pai
O seu amado Guilherme
Que é fogueiro no "Gil Eanes".

E a noite cai mais sombria;
Não há rumor de ninguém...
E tarda a romper o dia!

ANTÓNIO BOTTO

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Quanto, Quanto me Queres?

 Quanto, quanto me queres? - perguntaste 
 Olhando para mim mas distrahida; 
 E quando nos meus olhos te encontraste, 
 Eu vi nos teus a luz da minha vida. 

 Nas tuas mãos, as minhas, apertaste. 
 Olhando para mim como vencida, 
«...quanto, quanto...» - de novo murmuraste 
 E a tua boca deu-se-me rendida! 

 Os nossos beijos longos e anciosos, 
 Trocavam-se frementes! - Ah! ninguem 
 Sabe beijar melhor que os amorosos! 

 Quanto te quero?! - Eu posso lá dizer!... 
- Um grande amor só se avalia bem 
 Depois de se perder. 

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Passei o Dia Ouvindo o que o Mar Dizia 

Eu ontem passei o dia 
 Ouvindo o que o mar dizia. 
Chorámos, rimos, cantámos. 
 Falou-me do seu destino, 
 Do seu fado... 
Depois, para se alegrar, 
 Ergueu-se, e bailando, e rindo, 
 Pôs-se a cantar 
 Um canto molhado e lindo. 
O seu hálito perfuma, 
 E o seu perfume faz mal! 
Deserto de aguas sem fim. 
Ó sepultura da minha raça 
 Quando me guardas a mim?... 
Ele afastou-se calado; 
 Eu afastei-me mais triste, 
 Mais doente, mais cansado... 
Ao longe o Sol na agonia 
 De roxo as aguas tingia. 
«Voz do mar, misteriosa; 
 Voz do amor e da verdade! 
- Ó voz moribunda e doce 
 Da minha grande Saudade! 
 Voz amarga de quem fica, 
 Trémula voz de quem parte...» 
E os poetas a cantar 
 São ecos da voz do mar!

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Quem não Ama não Vive 

Já na minha alma se apagam 
 As alegrias que eu tive; 
 Só quem ama tem tristezas, 
 Mas quem não ama não vive. 

 Andam pétalas e fôlhas 
 Bailando no ár sombrío; 
 E as lágrimas, dos meus olhos, 
 Vão correndo ao desafio. 

 Em tudo vejo Saudades! 
 A terra parece mórta. 
- Ó vento que tudo lévas, 
 Não venhas á minha pórta! 

 E as minhas rosas vermelhas, 
 As rosas, no meu jardim, 
 Parecem, assim cahidas, 
 Restos de um grande festim! 

 Meu coração desgraçado, 
 Bebe ainda mais licôr! 
 - Que importa morrer amando, 
 Que importa morrer d'amôr! 

 E vem ouvir bem-amado 
 Senhor que eu nunca mais vi: 
 - Morro mas levo commigo 
 Alguma cousa de ti. 

António Botto, in 'Canções'

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José Carlos Pereira Ary dos Santos GOIH (Lisboa, 7 de Dezembro de 1937 — Lisboa, 18 de Janeiro de 1984) foi um poeta e declamador português, 

Ficou na História da música portuguesa por ter escrito poemas de 4 canções vencedoras do Festival Eurovisão da Canção: Desfolhada Portuguesa (1969), com interpretação de Simone de Oliveira, Menina do Alto da Serra (1971), interpretada por Tonicha, Tourada (1973), interpretada por Fernando Tordo e Portugal no Coração (1977), interpretada pelo grupo Os Amigos.

Com Fernando Tordo escreve mais de 100 poemas para canções do músico e o duo Tordo/Ary continua a ser, até hoje, um dos mais profícuos da História da Música Portuguesa. São de suas autoria canções intemporais como Tourada, Estrela da Tarde, Cavalo à Solta, O amigo que eu canto, Café, Dizer Que Sim à Vida e Rock Chock. Estas canções foram interpretadas por cantores como Fernando Tordo, Carlos do Carmo, Mariza, Amália Rodrigues, Mafalda Arnauth e Paulo de Carvalho.

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Retrato de Amigo Por ti falo. 

E ninguém sabe. Mas eu digo 
 meu irmão    minha amêndoa    meu amigo 
 meu tropel de ternura    minha casa 
 meu jardim de carência    minha asa. 

 Por ti morro e ninguém pensa. Mas eu sigo 
 um caminho de nardos empestados 
 uma intensa e terrífica ternura 
 rodeado de cardos por muitíssimos lados. 

 Meu perfume de tudo    minha essência 
 meu lume    minha lava    meu labéu 
 como é possível não chegar ao cume 
 de tão lavado céu? 

Ary dos Santos, in 'Fotosgrafias'

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Estrela da Tarde 
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia 

Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia 

Era tarde, tão tarde, que a boca tardando-lhe o beijo morria. 

Quando à boca da noite surgiste na tarde qual rosa tardia 

Quando nós nos olhámos, tardámos no beijo que a boca pedia 
E na tarde ficámos, unidos, ardendo na luz que morria 
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia 
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia. 


        Meu amor, meu amor 
        Minha estrela da tarde 
        Que o luar te amanheça 
        E o meu corpo te guarde. 
        Meu amor, meu amor 
        Eu não tenho a certeza 
        Se tu és a alegria 
        Ou se és a tristeza. 
        Meu amor, meu amor 
        Eu não tenho a certeza! 

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram 
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram 
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram 
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram. 
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram 
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam 
Era a noite mais clara daqueles que à noite se deram 
E entre os braços da noite, de tanto se amarem, vivendo morreram. 

        Meu amor, meu amor 
        Minha estrela da tarde 
        Que o luar te amanheça 
        E o meu corpo te guarde. 
        Meu amor, meu amor 
        Eu não tenho a certeza 
        Se tu és a alegria 
        Ou se és a tristeza. 
        Meu amor, meu amor 
        Eu não tenho a certeza! 

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso se é pranto 
É por ti que adormeço e acordado recordo no canto 
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto 
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto 
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto! 

Ary dos Santos, in 'As Palavras das Cantigas'

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Desespero 



Não eram meus os olhos que te olharam 

 Nem este corpo exausto que despi 

 Nem os lábios sedentos que poisaram 
 No mais secreto do que existe em ti. 

 Não eram meus os dedos que tocaram 
 Tua falsa beleza, em que não vi 
 Mais que os vícios que um dia me geraram 
 E me perseguem desde que nasci. 

 Não fui eu que te quis. E não sou eu 
 Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto, 
 Possesso desta raiva que me deu 

 A grande solidão que de ti espero. 
 A voz com que te chamo é o desencanto 
 E o esperma que te dou, o desespero. 

Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'

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O amigo que eu canto

Desde quando nasci
 Que o conheço e lhe quero
 Como a um irmão meu
 Como ao pai que perdi,
 Como tudo o que espero.

É um homem que tem o condão da doçura
 No sorriso de água, nos olhos cansados,
 É metade alegria, é metade ternura
 Nas palavras cantadas, nos gestos dançados,
 Nos silêncios magoados.

Tem um rosto moreno
 Que o inverno o marcou
 E apesar de ser forte,
 É um homem pequeno
 Mas maior do que eu sou.

Tem defeitos, é certo. Como todos nós.
 Sonha, às vezes demais,
 Fala, às vezes no ar
 Mas quando dentro dele a alma ganha a voz
 É tal como se fosse o som do nosso mar,
 Se pudesse falar...

Foi capaz de mentir,
 Foi capaz de calar
 É capaz de chorar e de rir,
 Tem um quê de fadista,
 Tem um quê de gaivota,
 E a mania que há-de ser artista.
 Quando vê que precisa
 É capaz de roubar,
 Mas também sabe dar a camisa.
 Foi capaz de sofrer,
 Foi capaz de lutar,
 È capaz de ganhar
 E perder.

É um amigo meu que às vezes me ofende
 Mas que eu sei que me escuta,
 Que eu sei que me ouve
 E também compreende.
 Quantas vezes lhe digo que tenha juízo,
 Que a mania dos copos só lhe faz é mal,
 Que a preguiça não paga e que o trabalho é preciso.
 Ele encolhe-me os ombros num desprezo total,
 Este tipo é assim, mas...
 Foi capaz de mentir,
 Foi capaz de calar
 É capaz de chorar e de rir,
 Tem um quê de fadista,
 Tem um quê de gaivota,
 E a mania que há-de ser artista.
 Quando vê que precisa
 É capaz de roubar,
 Mas também sabe dar a camisa.
 Qual o nome final
 Deste amigo que eu canto?
 Pois é claro que é
 Portugal.


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